VI – Territórios Informacionais Recombinantes
A ideia da globalização, forte característica da cultura contemporânea, remete a uma sensação de perda de território, de apagamento de fronteiras. A globalização nos remete a diversos problemas de fronteira (cultural, política, geográfica, subjetiva...). Qual o limite do indivíduo e de sua subjetividade hoje? O que é a subjetividade contemporânea em relação à subjetividade moderna, senão esfacelamento? Qual é a fronteira do corpo físico em meio às diversas próteses tecnológicas? Qual é o limite legal da economia de um Estado-Nação? Até que ponto o nosso governo, por exemplo, é autônomo para decidir livremente sobre os destinos da sua economia? Não seria ele dependente de organismos supranacionais, como o FMI, o GATT, o Banco Mundial que balizam, de certa forma, a economia nacional? A Europa, um continente, também não é uma comunidade, uma zona que agrega países que têm que se adaptar a uma constituição européia para além, às vezes, de sua própria soberania?
Essa desterritorialização cultural e política é também econômica. O dinheiro circula por cidades mundiais buscando maior rentabilidade, sem reconhecer fronteiras territoriais. Na esfera cultural, as fronteiras também têm sido apagadas pelo que se chama de multiculturalismo. Hoje, através da internet, é possível ouvir uma rádio russa, ler um jornal da Coréia e visitar um site da Finlândia. Fazemos isso diariamente com muita facilidade. Podemos estar conversando com alguém do Sri Lanka pelo messenger, sem nos darmos conta de que estamos vivendo um processo de desterritorialização generalizado. Participamos de diversos acontecimentos, temos acesso a diversas culturas e a diversas informações que não necessariamente fazem parte do nosso território. O sociólogo Anthony Giddens (1991) vai chamar esse fenômeno de desencaixe.
Certamente os meios massivos criam processos desterritorializantes com as informações mundiais, “ao vivo”. No entanto, a televisão só podia ser vista localmente, o mesmo acontecendo com o rádio e os jornais, que remetem sempre aos nossos espaços locais, ao nosso território, à nossa cidade. Com a cultura digital das mídias pós-massivas e principalmente as tecnologias móveis, vemos agravarem-se os processos de desterritorialização. Mas, ao mesmo tempo, criamos também novas territorializações.
Desenvolvemos, nos últimos anos, no Grupo de Pesquisa em Cibercidade (GPC)2 trabalhos voltados à interface entre o espaço eletrônico e o espaço urbano, pesquisas sobre a relação entre as novas tecnologias e as cidades. Recentemente, o trabalho tem se dirigido à análise de tecnologias móveis, principalmente dos processos que se dão a partir de redes de telefones celulares, redes Bluetooth, etiquetas RFID e áreas de conexão Wi-Fi. Essas tecnologias criam processos desterritorializantes e também territorializantes a partir do fluxo de trocas informativas em territórios informacionais digitais. Os celulares são hoje um fenômeno mundial e o Brasil atingiu recentemente a marca de 100 milhões de unidades. Trata-se de um equipamento que converge diversas funções, sendo um “teletudo”, capaz de conectar vozes, dados, imagens fixas e animadas, vídeos, música, mensagens de texto... A tecnologia de rede via chips bluetooth permite a criação de pequenas redes entre diversos equipamentos. Estas já são tecnologias disponíveis em alguns telefones celulares, computadores, máquinas fotográficas, entre outros aparelhos. As etiquetas de radiofrequência, RFID, estão substituindo os antigos códigos de barra, emitindo informações sobre produtos/objetos dentro de um pequeno perímetro. As formas de conexão sem fio à internet através de equipamentos como laptops, palms e smartphones são conhecidas como protocolo Wi-Fi (Wireless Fidelity), rede sem fio de acesso à internet com alcance em um raio de até 100m (além da Wi-Max, um prolongamento da tecnologia Wi-Fi com alcance de até 50km).
Essas tecnologias, ou mídias locativas, estão reconfigurando as práticas sociais e comunicacionais nas cidades contemporâneas a partir de ações que se desenvolvem dentro do que chamaremos aqui de territórios informacionais. A interface entre o espaço eletrônico e o espaço urbano cria os territórios digitais informacionais. Estes se formam na emissão e recepção de informação digital em espaços híbridos, informacional e físicos, através dos dispositivos móveis acima mencionados. Eles se caracterizam de maneira diferenciada em relação ao espaço de informação dos meios massivos, como a TV, o rádio e a mídia impressa.
A questão do território, como alguns geógrafos vão definir, tem relação direta com o controle. A noção de território como controle vem da etologia, mostrando como o comportamento dos animais estabelece zonas efetivas de controle. Toda a noção de território tem relação com a noção de acesso e controle no interior de fronteiras. Essas palavras, acesso e controle, são extremamente importantes para a compreensão da sociedade tecnológica contemporânea. O acesso ao universo informacional se dá através de senhas. E existe hoje, efetivamente, na rede, um maior controle sobre o que emitimos e recebemos, diferentemente da prática de consumo de informação na cultura massiva.
Há, na cultura de massa, a possibilidade de controle apenas sobre as informações recebidas: escolha de jornais, de emissoras de televisão, de estações de rádio etc., mas não sobre a emissão. Se não há controle total do fluxo informativo, não há território informacional. Hoje, com as mídias pós-massivas, essa liberdade existe, como vimos nos exemplos dos princípios da emissão, conexão e reconfiguração. Na atual cibercultura, podemos ter maior controle informacional, já que é possível fazer mais escolhas do que consumimos como informação e também emitir nossa própria informação. O lócus de controle desse fluxo informativo é o território informacional, onde o usuário controla o que entra e sai na sua fronteira informacional. Trata-se de um território invisível, constituído na intersecção do espaço físico com o eletrônico. Propomos aqui a ideia polissêmica de território, para além do espaço físico, da fronteira jurídica dos Estados, ideia na qual cabem noções como território subjetivo, cultural, artístico... O território informacional é uma “heterotopia” (Foucault, 1994) do controle e acesso a informações digitais.
A internet e as tecnologias digitais contemporâneas, desde a internet fixa até as tecnologias móveis atuais, permitem, efetivamente, a vivência de processos desterritorializantes, mas, ao mesmo tempo, de controle informacional, ou seja, de criação de territórios. Podemos ver processos desterritorializantes na total imobilidade (o pensamento para Deleuze é a desterritorialização por excelência), assim como processos territorializantes na mobilidade, como o mapeamento de territórios via GPS ou telefones celulares. Um indivíduo, por exemplo, pode estar imóvel, em sua própria casa, mas desterritorializado, ao experienciar eventos que não fazem necessariamente parte de sua cultura (pela TV ou hoje pela internet). Por outro lado, um executivo que viaja com um laptop e um celular está em mobilidade, mas, ao mesmo tempo controlado e, assim, territorializado pelo monitoramento informacional exercido pela estrutura empresarial. Estas duas noções são bastante complexas e não poderemos desenvolvê-la aqui.3 Efetivamente, as mídias de massa criam processos desterritorializantes (jornais, TV, rádio). O ciberespaço cria também processos desterritorializantes ao permitir o consumo multicultural. Um ativista chinês, por exemplo, pode obter informações e disseminá-las, tentando escapar ao controle policial e político de seu país, criando uma linha de fuga, uma desterritorialização pela internet. O mesmo podemos dizer da coordenação informacional do PCC (Primeiro Comando da Capital, organização criminosa) em recentes ataques à cidade e ao Estado de São Paulo. Territorializados pelo poder judicial, dentro de uma prisão, os líderes do PCC conseguem, com as tecnologias móveis, mobilizar e atingir diversos pontos não só da capital, mas também de outras cidades do Estado. Vemos aqui processos desterritorializantes através de redes telemáticas, computadores e, principalmente, telefones celulares.
Autores consideram o ciberespaço como um espaço ilimitado constituído por redes informacionais planetárias, permitindo a circulação fora de qualquer constrangimento. Ele seria um espaço puro, sem fricção, etéreo e virtual. No ciberespaço, o território rugoso e resistente é apagado, apenas subsistindo um espaço fluido, feito para circulação. Contudo, embora ele efetivamente permita esse tipo de circulação, o ciberespaço é também um espaço estriado, institucionalizado, controlado, feito por protocolos de acessos a partir de senhas informacionais, organizado por padrões tecnológicos geridos pelo ICANN, instituição do Departamento de Comércio Americano. O ciberespaço não é um território apenas liso, mas também um território de controle e vigilância, ou seja, um lugar de territorialização.
Assim, por exemplo, os meus sites, blogs, podcasts, minha comunidade, minha rede de relacionamento, são formas de territorialização no ciberespaço global. Crio minhas zonas de controle informacional em meio ao fluxo planetário de possibilidades desterritorializantes. Um processo não existe sem o outro. As tecnologias informacionais como o telefone celular, palms ou laptops são dispositivos pelos quais exercemos o controle informacional. Esse lugar de controle constitui o meu território informacional digital, formado pelo espaço telemático, por senhas de acesso e lugares físicos de conexão. No entanto, embora territorializado, posso realizar efetivamente movimentos de fuga, de desterritorialização. Quais os processos que estão em jogo hoje com o território informacional?
O sociólogo espanhol Manuel Castells (1996) cria uma polaridade com o que chama de espaço de fluxos, que é o ciberespaço, e o espaço de lugar, que são ruas, monumentos, praças, lugares físicos de uma cidade. Castells chama a atenção para a sinergia dessas duas modalidades de espaço. O espaço de fluxos não é etéreo, mas ancorado nos espaço de lugar. São computadores interligados, redes de satélites, cabos de fibra ótica, servidores etc., criando uma infraestrutura concreta de constituição das redes telemáticas. Nessa fusão de espaço de lugar e espaço de fluxo, vemos a constituição dos territórios informacionais: além do território físico, do controle simbólico, corporal, cultural, vemos surgir uma nova dimensão, um território que podemos chamar de território de controle de informação, o território digital informacional.
Esses territórios informacionais são constituídos, cada vez mais, não apenas por “pontos de presença” (acesso por cabos, preso a um determinado espaço de lugar), mas por zonas amplas de acesso nas quais é possível acessar informação em mobilidade na interface entre o espaço eletrônico e o espaço físico das cidades. Algumas cidades americanas e européias oferecem zonas de acesso Wi-Fi livres em centros e pontos estratégicos das cidades. Esse lugar, na interseção do fluxo informacional com o espaço físico, onde é possível controlar a emissão e a recepção, aumentando o espectro da comunicação e da informação social, é um território digital. Mas qual a relação entre esses territórios informacionais e a cibercultura recombinante?
A mídia massiva – televisão, jornais, rádios, impresso – são meios informativos utilizados na esfera privada, sem nenhuma possibilidade de emissão. Esses produtos da mídia massiva são, erroneamente, chamados de meios de comunicação de massa. Eles cumprem efetivamente um papel comunicacional, mas apenas por sua função informativa. Assim, televisão, rádio, revistas e jornais são meios que não permitem o estabelecimento de processos comunicativos mais amplos e profundos, com formatos comunicacionais de mão dupla e efetiva troca entre consciências. Na verdade, são meios de informação que não permitem nenhuma interação, a não ser, indiretamente, pela interpretação e demais processos simbólicos de recepção e formação de opinião pública.
A cultura digital pós-massiva estabelece processos de mão-dupla, aumentando a possibilidade efetiva de ocorrência de fenômenos comunicativos. A diferença existente em relação aos meios massivos é que nestes o território é, na maioria das vezes, um espaço privado (ou semiprivado) e o consumo da informação se dá de forma unidirecional, apenas como recepção, sem mobilidade. Hoje, o território digital cria uma zona dentro de outros territórios onde é possível acessar, produzir e distribuir informação, de maneira autônoma, estabelecendo redes colaborativas e processos comunicativos mais complexos. Assim, qualquer indivíduo pode fazer fotos ou um vídeo pelo celular e rapidamente enviar para sua comunidade no YouTube, Orkut ou blog. Essa gestão do fluxo da informação é incontrolável (a priori) pelo território físico onde se dá a conexão.
Por exemplo: do lugar onde estou, posso enviar fotos, filmes ou mensagens de texto sem que aqueles que controlam esse território físico, legal, simbólico, saibam ou mesmo possam fazer alguma coisa (a não ser que bloqueiem o acesso à rede, impedindo a criação do meu território informacional). Há aqui uma imbricação entre os diversos territórios que compõem essa minha experiência: o território físico (o ICBA, Salvador, Brasil...), meu território corporal e subjetivo, o território econômico, jurídico, cultural onde estou imerso, o meu território informacional, ao qual somente eu tenho acesso a partir de minhas senhas pessoais. Assim, o território informacional deve ser pensado nessa miríade de territórios e deve ajudar a manter a privacidade e a segurança do meu território. O reconhecimento do território informacional é comunicacional, mas também social e político.
Ao aumentar a possibilidade de trocas entre consciências (blogs, fóruns, chats, redes p2p etc....), as mídias pós-massivas aumentam a probabilidade de ocorrência de processos comunicativos, ampliando as formas de recombinação. Com as tecnologias móveis e os territórios informacionais, essa potência da emissão, da conexão e da reconfiguração aumenta ainda mais as práticas de colaboração e recombinação, aliando de forma mais forte comunicação, comunidade, sociabilidade e mobilidade. A partir daí surgem diversas e inusitadas formas de recombinação informacional e cultural (troca de SMS, fotos e vídeos por celular, smart mobs e flash mobs, short films em celulares, troca de arquivos via bluetooth, mudança nos espaços e nas práticas sociais nesses espaços a partir de zonas Wi-Fi e etiquetas RFID, games de rua...). Criam-se aqui novas tensões entre público e privado, entre o controle por parte do território físico ou institucional (que são as leis, as regras e tudo o que está em jogo em uma instituição) e o espaço eletrônico.
Os territórios informacionais permitem, assim, a emergência, no espaço urbano, de formas sociais e comunicacionais novas, de usos diferenciados do espaço urbano, permitindo diversas reconfigurações que vão, por sua vez, alimentar ainda mais os três princípios básicos antes mencionados: a liberação da emissão, a conexão generalizada e a configuração das diversas instâncias da cultura. Essas recombinações são muito complexas e estamos ainda no início desse processo. Contudo, já vivemos a potência da cibercultura remix, na qual a recombinação se dá por diversos territórios, seja na internet fixa ou na internet móvel, com as tecnologias sem fio. Assistimos, na cibercultura recombinante, a diversos processos de mixagem em diversos territórios, físicos, culturais, simbólicos e informacionais.
Reconhecer essa dinâmica é fundamental e mesmo estratégico para que a cultura brasileira possa produzir conteúdos para a sociedade da informação. A cultura brasileira deve compreender e aproveitar os três princípios fundamentais dessa sociedade: emitindo, na produção de conteúdo, conectando, em processos coletivos e colaborativos, produzindo inteligências coletivas e alterando as condições de vida, reconfigurando a cultura e a vida social. Isso não deve ser muito difícil, já que entendemos de recombinação e remixagem por sermos fruto desse processo. Nascemos na mistura, do sincretismo e do pluralismo cultural. Cabe então aproveitar esse conhecimento nato e corporal para poder participar ativamente da cibercultura e criar novos territórios recombinantes.
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