A INTERNET NO CORPO HUMANO
As implicações deste cenário de ubiquidade e pervasividade para um modelo cibercultural foram apresentadas por Mattern (2007, p. 23), que resumo a seguir.
Qualquer objeto potencializado com processamento eletrônico de informações ou de identificação de suas características pode ser entendido como mídia. Portanto, quem produz e a quem pertencem os conteúdos?
O sensível limite entre inclusão/exclusão digitais fica mais sensível ainda. Um mundo baseado em informações que trafegam exclusivamente em rede tende a favorecer cartéis, monopólios e concentrações de poder de muitas espécies. Amplia-se a capacidade de vigilância social na medida em que o potencial de monitoramento de ações e informações sai do computador pessoal e instala-se em quaisquer objetos inteligentes e digitalizados.
Na mesma linha de pensamento, temos o cenário de geração de protocolos. Se na ubiquidade a sociabilização se dará prioritariamente em rede, tal ambiência exigirá que computadores, objetos e seres humanos troquem informações entre si, sem distinção de identidade ou status. Para tanto, todos deverão “codificar-se na mesma língua”. Ou seja, todos deverão possuir os mesmos protocolos de troca de dados e informações.
Referenciamo-nos, aqui, nas ideias de Alexander Galloway (2004, p. 18), para quem um protocolo computacional é um conjunto de recomendações e regras que governam a implantação e a operação de tecnologias específicas.
Na prática, trocamos protocolos simplesmente por estarmos em rede. Por exemplo, ao digitarmos o http: em nosso browser ou ao acionarmos nosso provedor de acesso à internet, estamos no protocolo TCP/IP; quando vemos nossos micros infectados por vírus e acionamos nossos antivírus e anti-spams; quando organizamos uma lista de discussão num site hospedeiro, quando construímos um blog ou um website, entre inúmeras possibilidades.
As implicações do cenário de uso sistemático e contingencial de protocolos para um modelo cibercultural têm uma relação direta sobre a variável controle. Assim, se entendemos que:
- o protocolo é uma técnica de aquisição voluntária de regulação em ambientes de contingência;
- o protocolo age como codificação de pacotes de informação para serem transportadas em rede;
- o protocolo codifica informações e documentos, codifica a comunicação entre dispositivos, não importando o conteúdo do código; então numa visão mais ampla,
- o protocolo é um sistema de gestão de dados que permite a existência do controle seja qual for a heterogeneidade do meio ou da rede.
Em termos práticos, se os protocolos são construídos pelo próprio ser humano para possibilitar as trocas em rede, então é condição inerente da rede a existência do controle da forma de acesso e a construção lógica das informações que nela circulam. Instala-se aqui uma vivência ainda não consciente por todos os conectados em rede: a vivência do controle e uma nova visão do público e do privado.
Com isso, introduzimos o último aspecto de nossa reflexão: se temos uma ambiência de rede que só opera na pervasividade e na codificação das trocas; se, por consequência, temos outro e ainda não coletivamente configurado patamar de público e privado, então estamos por vivenciar um futuro padrão ético para sustentar a sociabilidade na rede.
Aqui nos valemos das ideias dos professores Octávio Ianni, com a figura do “príncipe eletrônico”, e Denis de Moraes, com sua “ética das interações”. Apenas para contextualizar, resumimos rapidamente estas visões.
Para Ianni (2000, p. 12), nos momentos históricos de ruptura, sempre houve uma presença principesca catalisadora com capacidade de transformação dos paradigmas social, político e econômicos vigentes. Assim, no Renascimento, tivemos o príncipe de Maquiavel: uma pessoa real, um líder capaz de conciliar sua virtú (liderança) com a fortuna (as condições sociopolíticas); a modernidade e a industrialização configuram o Moderno Príncipe de Gramsci, em que a representação principesca concentra-se no partido político como entidade social capaz de interpretar as inquietações e reivindicações dos outros setores da sociedade; e da sociedade pautada por redes e fluxos digitais de informação, emerge o príncipe eletrônico, uma entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os setores da sociedade, em escala local, nacional, regional e mundial. É o intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em todas as escalas, sempre em conformidade com os diferentes contextos socioculturais e político-econômicos desenhados no novo mapa do mundo.
Já para Denis de Moraes (2003, p. 28), a configuração de uma nova ética decorre dos seguintes aspectos:
- o ciberespaço e sua megacomunidade universalizam-se por contato e interação, não por homogeneização;
- a lógica da conexão (máquina e tecnologia) – identificação (login e senha) – exposição ao coletivo (ação e interação);
- as convivências paradoxais: entre a voracidade do comercial/econômico e as modalidades digitais de cultura, educação e entretenimento;
- a constituição de um foro de legitimação virtual da cena social real.
Com isso, podemos dizer que os estatutos éticos das comunidades virtuais se constroem no interior de seus cosmos produtivos, por motivações cooperativas e coordenações de qualidades e vocações individuais. É cada indivíduo que decide unilateralmente a relação ética de suas atividades no mundo virtual. Tais regras não provêm de fora, das estruturas de poder. A exemplo dos protocolos, estas novas regras de sociabilização deveriam ser aceitas por consenso e adaptadas às singularidades, práticas e tradições. O ciberespaço propõe uma coexistência autorregulada, em constantes revisões. A ciberética apoia-se em regras e valores consensuais estabelecidos pelas células de usuários, respeitando-se a pluralidade de contextos, os projetos societários e, acima de tudo, a liberdade de manifestação do pensamento.
Assim, encerro esta reflexão com a afirmação de que as práticas ciberculturais num futuro próximo deverão ocorrer sob uma nova instância de autorregulação do público e do privado, condicionada às características da ubiquidade e dos protocolos computacionais. Iniciamos, portanto, um novo ciclo de saberes/vivências.
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