CIBERCULTURA: UM NOVO SABER OU UMA NOVA VIVÊNCIA?
 

Elizabeth Saad Corrêa

Considerando o tema que me proponho a abordar aqui – um novo saber ou uma nova vivência na cibercultura –,* podemos dizer que estamos, no contexto da sociabilidade e da vida cotidiana, num tecido social em que predomina uma sucessão de padrões e manifestações sociocomportamentais vinculados às já conhecidas características de uma sociedade em rede, conectada e informacional.

Não tratarei das características da cibercultura e de sua reconfiguração. Mas gostaria de partir destes cenários, especialmente quanto ao que vem pela frente em termos sociais, tecnológicos e comunicacionais, para lançar um olhar crítico e um conjunto de percepções sobre o que é saber e vivência nesse contexto.

Antes de tudo, gostaria de caracterizar a importância da relação saberes-vivência.

Como já disse, a sociabilidade que ocorre por meio das redes digitais de informação e comunicação exige de seus participantes uma imersão tanto intelectual quanto prática para acompanhar a aceleração tecnológica, o uso de diferentes aparatos de informática e telecomunicação, o domínio de uma linguagem especialmente construída (a hipermídia) e a lógica da não-linearidade e da bidirecionalidade dos fluxos comunicacionais.

A imersão intelectual impõe aos indivíduos a construção de novos conhecimentos e saberes; e a imersão nas aplicações, no uso dos aparatos e no exercício das trocas hipermediáticas refletem naturalmente a vivência.

Portanto, estamos diante de uma relação – saber/vivência – quase que indissolúvel se levarmos em conta o máximo de ambiência digital. E a questão que emerge como foco desta reflexão é exatamente a velocidade de mutação associada ao saber/vivência, determinada por variáveis como inovação tecnológica, e predomínio de uma economia de fluxos globais. Consequentemente, emerge também a discussão sobre as formas de adaptabilidade à velocidade de mutação que se exige dos participantes de uma sociedade conectada.

Gostaria de sugerir a todos que fizessem uma imersão pessoal num cenário muito corriqueiro em nosso ambiente de sociabilização e constatassem os próprios comportamentos e reações.

É fato comum nas grandes metrópoles globais – São Paulo incluída – presenciarmos, em cafés, centros de compras, instituições de ensino, espaços de entretenimento e lazer, pessoas manipulando algum tipo de dispositivo eletrônico, como o celular, o laptop, um reprodutor de mp3, receptores de radiofrequência etc., passando por imperceptíveis sensores de segurança, adquirindo bens de consumo equipados com etiquetas inteligentes ou consultando localizadores geográficos, entre outras possibilidades – todos e tudo emitindo e recebendo sinais eletrônicos simultaneamente em busca de algum tipo de conexão com a web, entrecruzando e transformando o éter numa subjacente e silenciosa competição por um espectro finito de rádio, por largura de banda insuficiente, por velocidade de tráfego e aceleração dos downloads.

A comunicação coletiva e a troca de informações por meio de dispositivos digitais se posicionam hoje como dominantes e quase determinantes. Sua dinâmica operacional se instala neste espaço etéreo, sem nos darmos conta de que estamos criando mais uma (e talvez poderosa) instância de compartilhamento do público e do privado, paralela e ao mesmo tempo promíscua – instância que, teoricamente, teria características autorreguladoras e auto-organizadoras da ordem comunicacional e midiática, mas que também promove a desterritorialização e a não-subjetivação de emissores e receptores, atores e agentes, protagonistas e audiências, a miscigenação entre forma e conteúdo, meio e mensagem.

Gostaria de trazer para reflexão três temas que considero relevantes e merecedores de nossa atenção para uma vida cibercultural num futuro próximo: a ubiquidade e os protocolos computacionais, que se colocam diante de nós como novo conjunto de saberes; e a constituição de uma ambiência digital pautada por uma ética das interações gerada em desconhecidos ou novos patamares do público e do privado, exigindo de todos novas habilidades e competências para vivenciar tais inovações.

Iniciemos pela ubiquidade ou computação ubíqua. No tema, faço referência a autores como Mark Wieser (1999), que cunhou o termo computação ubíqua; Neil Gershenfeld (2000), do MIT; e o cientista alemão Friedmann Mattern (2007).

A visão acadêmica de Wieser conceitua a computação ubíqua como um processo em que a tecnologia fica cada vez mais embutida/embarcada e invisível numa diversidade de objetos de nosso dia-a-dia. Para ele, o computador pessoal como objeto de conexão e informação universal deverá desaparecer, e se ampliará a capacidade de processamento informacional nos objetos que nos rodeiam. A tecnologia deixa de ser intrusiva e passa a oferecer um estado de “calma” e solução rotineira.

Sob o ponto de vista mais econômico e industrial, este cenário passa a denominar-se de computação pervasiva, na medida em que o processamento das informações obtidas por meio dos diversos objetos que nos cercam servirá para a aceleração de comércio eletrônico, negócios baseados na rede, fluxos financeiros etc.

Os dispositivos e aparatos que representam a ubiquidade vão desde o celular e a internet móvel até sofisticações como:

  • telefonia móvel equipada com localizadores GPS e GIS;
  • computação vestível: não só portáteis, os aparatos digitais poderão ser inseridos em objetos (relógios, tênis, geladeiras etc.);
  • nanotecnologia;
  • smart cards, etiquetas eletrônicas, sensores – os RIFDs;
  • softwares agentes inteligentes;
  • ferramentas de busca com capacidade de interagir com os agentes; e
  • a internet das coisas: todas as coisas no ambiente terão identidade no ciberespaço, o que permitirá a comunicação e a interação entre pessoas, entre objetos e entre pessoas e objetos, numa escala impressionante.
A INTERNET NO CORPO HUMANO


As implicações deste cenário de ubiquidade e pervasividade para um modelo cibercultural foram apresentadas por Mattern (2007, p. 23), que resumo a seguir.

Qualquer objeto potencializado com processamento eletrônico de informações ou de identificação de suas características pode ser entendido como mídia. Portanto, quem produz e a quem pertencem os conteúdos?

O sensível limite entre inclusão/exclusão digitais fica mais sensível ainda. Um mundo baseado em informações que trafegam exclusivamente em rede tende a favorecer cartéis, monopólios e concentrações de poder de muitas espécies. Amplia-se a capacidade de vigilância social na medida em que o potencial de monitoramento de ações e informações sai do computador pessoal e instala-se em quaisquer objetos inteligentes e digitalizados.

Na mesma linha de pensamento, temos o cenário de geração de protocolos. Se na ubiquidade a sociabilização se dará prioritariamente em rede, tal ambiência exigirá que computadores, objetos e seres humanos troquem informações entre si, sem distinção de identidade ou status. Para tanto, todos deverão “codificar-se na mesma língua”. Ou seja, todos deverão possuir os mesmos protocolos de troca de dados e informações.

Referenciamo-nos, aqui, nas ideias de Alexander Galloway (2004, p. 18), para quem um protocolo computacional é um conjunto de recomendações e regras que governam a implantação e a operação de tecnologias específicas.

Na prática, trocamos protocolos simplesmente por estarmos em rede. Por exemplo, ao digitarmos o http: em nosso browser ou ao acionarmos nosso provedor de acesso à internet, estamos no protocolo TCP/IP; quando vemos nossos micros infectados por vírus e acionamos nossos antivírus e anti-spams; quando organizamos uma lista de discussão num site hospedeiro, quando construímos um blog ou um website, entre inúmeras possibilidades.

As implicações do cenário de uso sistemático e contingencial de protocolos para um modelo cibercultural têm uma relação direta sobre a variável controle. Assim, se entendemos que:

  • o protocolo é uma técnica de aquisição voluntária de regulação em ambientes de contingência;
  • o protocolo age como codificação de pacotes de informação para serem transportadas em rede;
  • o protocolo codifica informações e documentos, codifica a comunicação entre dispositivos, não importando o conteúdo do código; então numa visão mais ampla,
  • o protocolo é um sistema de gestão de dados que permite a existência do controle seja qual for a heterogeneidade do meio ou da rede.
Em termos práticos, se os protocolos são construídos pelo próprio ser humano para possibilitar as trocas em rede, então é condição inerente da rede a existência do controle da forma de acesso e a construção lógica das informações que nela circulam. Instala-se aqui uma vivência ainda não consciente por todos os conectados em rede: a vivência do controle e uma nova visão do público e do privado.

Com isso, introduzimos o último aspecto de nossa reflexão: se temos uma ambiência de rede que só opera na pervasividade e na codificação das trocas; se, por consequência, temos outro e ainda não coletivamente configurado patamar de público e privado, então estamos por vivenciar um futuro padrão ético para sustentar a sociabilidade na rede.

Aqui nos valemos das ideias dos professores Octávio Ianni, com a figura do “príncipe eletrônico”, e Denis de Moraes, com sua “ética das interações”. Apenas para contextualizar, resumimos rapidamente estas visões.

Para Ianni (2000, p. 12), nos momentos históricos de ruptura, sempre houve uma presença principesca catalisadora com capacidade de transformação dos paradigmas social, político e econômicos vigentes. Assim, no Renascimento, tivemos o príncipe de Maquiavel: uma pessoa real, um líder capaz de conciliar sua virtú (liderança) com a fortuna (as condições sociopolíticas); a modernidade e a industrialização configuram o Moderno Príncipe de Gramsci, em que a representação principesca concentra-se no partido político como entidade social capaz de interpretar as inquietações e reivindicações dos outros setores da sociedade; e da sociedade pautada por redes e fluxos digitais de informação, emerge o príncipe eletrônico, uma entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os setores da sociedade, em escala local, nacional, regional e mundial. É o intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em todas as escalas, sempre em conformidade com os diferentes contextos socioculturais e político-econômicos desenhados no novo mapa do mundo.

Já para Denis de Moraes (2003, p. 28), a configuração de uma nova ética decorre dos seguintes aspectos:
  • o ciberespaço e sua megacomunidade universalizam-se por contato e interação, não por homogeneização;
  • a lógica da conexão (máquina e tecnologia) – identificação (login e senha) – exposição ao coletivo (ação e interação);
  • as convivências paradoxais: entre a voracidade do comercial/econômico e as modalidades digitais de cultura, educação e entretenimento;
  • a constituição de um foro de legitimação virtual da cena social real.
Com isso, podemos dizer que os estatutos éticos das comunidades virtuais se constroem no interior de seus cosmos produtivos, por motivações cooperativas e coordenações de qualidades e vocações individuais. É cada indivíduo que decide unilateralmente a relação ética de suas atividades no mundo virtual. Tais regras não provêm de fora, das estruturas de poder. A exemplo dos protocolos, estas novas regras de sociabilização deveriam ser aceitas por consenso e adaptadas às singularidades, práticas e tradições. O ciberespaço propõe uma coexistência autorregulada, em constantes revisões. A ciberética apoia-se em regras e valores consensuais estabelecidos pelas células de usuários, respeitando-se a pluralidade de contextos, os projetos societários e, acima de tudo, a liberdade de manifestação do pensamento.

Assim, encerro esta reflexão com a afirmação de que as práticas ciberculturais num futuro próximo deverão ocorrer sob uma nova instância de autorregulação do público e do privado, condicionada às características da ubiquidade e dos protocolos computacionais. Iniciamos, portanto, um novo ciclo de saberes/vivências.

Referências


GALLOWAY, Alexander. Protocol: how control exists after decentralization. Cambridge: The MIT Press, 2004.

GERSHENFELD, Neil. The physics of information technology. Cambridge University Press: 2000.

IANNI, Octávio. Enigmas da modernodade-mundo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000.

MATTERN, Friedmann. Ubiquitous computing: scenarios for an informatized world. Disponível em: www.vs.inf.ethz.ch/res/papers/ECCMatternUbicompEng.pdf. Acesso em: 28 ago. 2007.

MORAES, Denis de. Por uma outra comunicação. Rio de Janeiro: Record, 2003.

WIESER, Mark. The computer for the 21st century. ACM SIGMOBILE Mobile Computing and Communications Review, v. 3 ,  issue 3, p. 3-11, July 1999. (Special issue dedicated to Mark Weiser).

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* Texto de referência – consolidado a partir de transcrição editada – da conferência ministrada em 26/09/2006 no I Simpósio Nacional de Pesquisadores em Comunicação e Cibercultura, organizado pelo CENCIB - Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Comunicação e Cibercultura da PUC-SP e realizado nesta Universidade, no período de 25 a 29 de setembro de 2006.