GAME “COZINHEIRO DAS ALMAS”:
BREVES RELATOS DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
 

Grupo Poéticas Digitais da ECA/USP
Gilbertto Prado (Coord.), Jesus de Paula Assis, Paula Janovitch,
Lívia Gabbai, Luciano Gosuen, Fábio Oliveira,
Gaspar Arguello, André Furlan e Hélia Vannuchi

I – INTRODUÇÃO

Em textos e apresentações anteriores, abordamos o processo de estruturação da trama do game Cozinheiro das Almas e fizemos uma série de testes e experimentos para a escolha do software mais adequado, no caso o 3DGameStudio.1 Neste artigo, passamos às fases de

(a) criação dos ambientes virtuais (Escola Normal e Garçonnière);
(b) modelagem do mobiliário;
(c) modelagem de personagens; e
(d) gravação do som para os ambientes.

A mecânica do game prevê que o personagem principal (o avatar do jogador) entre no edifício que abrigava a garçonnière usada por Oswald de Andrade em 1918/1919. Dali, ele é transportado no tempo para 1918 e, a partir da garçonnière, visita interativamente espaços em São Paulo nos quais ocorrem tramas ligadas aos interesses e aspirações dos modernistas (Oswald e Mário de Andrade, Olívia Guedes Penteado, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Monteiro Lobato, entre outros). Tudo acontece em um mesmo dia, mas o jogador visita os ambientes de forma aleatória. Pode, assim, cair em qualquer ambiente, em qualquer hora do dia. O “prêmio” do jogo é entender essa trama contada de forma fragmentária. Desse modo, o videogame se desenvolve em dois tipos de labirinto: um, espacial, e outro, temporal, o que difere das produções convencionais de mercado, que habitualmente atendem a objetivos como ganhar pontos, achar tesouros etc.

Por ora, essa mecânica será mostrada em viagens entre a garçonnière e a Escola Normal (onde estudava a normalista Daysi, centro das atenções de Oswald em 1918 e personagem mais importante de “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, diário da garçonnière).

II – ROTEIRO E AMBIENTES


O roteiro básico prevê que, na Escola Normal, ocorram as seguintes ações:

 

O roteiro, bem como todos os pontos de tensão no videogame, são obras de ficção. Mas tomamos como princípio que essa ficção deveria se desenvolver dentro de ambientes precisos.

A mecânica do jogo é inovadora: uma mescla de labirintos espaciais e temporais. Para realçar essa opção de roteiro, decidimos que os personagens estão parados no tempo, descoloridos e sem movimento, enquanto todo o mundo material é mostrado “realisticamente”.

Para que esse roteiro de ações possa se desenvolver plenamente, é preciso criar e construir os ambientes, tanto a Escola como a garçonnière, o ponto de partida.

O complexo da Escola do game já está realizado. Atualmente, o prédio que abriga a secretaria da Educação, na praça da República, tem três andares. Na época em que se desenvolveu a ação de Cozinheiro das Almas, o local abrigava um complexo com

(a) prédio principal (então com dois andares);
(b) ginásio (demolido); e
(c) edifício do Jardim da Infância da Escola Normal (mais alto que o prédio principal, tinha inclusive mirante; demolido em 1939).

Para reconstruir esses ambientes, foi necessária pesquisa histórica que determinasse a planta dos edifícios e vistas das salas, pátios, mobiliário etc. A partir desses dados, foram construídos os ambientes virtuais e as texturas (as superfícies) de cada setor do edifício (paredes, portas, escadarias etc.).

Algumas imagens ilustrativas do processo e/ou das partes realizadas podem ser visualizadas em http://www.cap.eca.usp.br/poeticas/?page_id=28.

Os videogames comerciais usam labirintos estreitos, com pouco ângulo de visão. Isso tem um motivo técnico: se o jogador enxerga grandes extensões do ambiente, o computador tem de, a cada segundo, recalcular em tempo real a aparência do ambiente. Uma forma de contornar o problema é criar imagens 2D tão convincentes (com sombras inclusive) que pareçam 3D. Esse é o trabalho de desenvolvimento de texturas, realizado pela nossa equipe.

O mobiliário da Escola é padronizado e temos boas referências iconográficas (embora sem cores e com algumas indicações de textura). As salas de aula têm basicamente lousa, cadeiras, carteiras, mesas, mapas e muitos quadros ilustrativos de geografia e história natural.

1. A Garçonnière


A garçonnière que ocupava o terceiro andar do edifício na rua Líbero Badaró, 67, em São Paulo, não tem referências visuais. Tudo o que podemos saber vem do diário (“O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”) e de romances de época, como “Madame Pommery”, de Hilário Tácito, que descreve esses ambientes, além do desenho pouco posterior (1922) de Anita Malfati, “O Grupo dos Cinco”.

Partimos de referências de época e, a partir delas, criamos toda a cenografia relevante.

Nosso ponto de partida foi o trabalho de Maurice Dufrene, arquiteto de design ativo na década de 1910. Sua ilustração sobre o que deveria ser um boudoir nos serviu de referência. No entanto, esse ambiente não é típico de algo que possa fazer sentido dentro de um videogame. Nesse tipo de meio expressivo, salas isoladas não têm muito sentido, pois oferecem pouco à exploração. Partindo de Dufrene, criamos uma planta da garçonnière de Oswald de Andrade, que atende a dois requisitos:

(a) é verossímil e historicamente precisa;
(b) é um ambiente no qual tem sentido um roteiro de videogame.

A seguir, imagens da planta resultante do trabalho de roteirização da garçonnière e croquis de mobiliário.

 

A sala de referência de Dufrene (5). O resto (acesso, cômodos, portas de ligação etc.) foi desenvolvido à parte. Na planta, vemos os espaços divididos para criação da cenografia.

Vista parcial da garçonnière em 1919, no game Cozinheiro das Almas.  
 

2. Personagens e sons


Os personagens foram objeto de muita discussão dentro do grupo.

Por um lado, existe a exigência de realismo dos ambientes. Por outro, queremos deixar claro que o jogador é a única coisa a se mover, enquanto todo o resto está paralisado. Assim, decidimos que os personagens humanos deveriam ser mostrados congelados, sem expressão, sem cor, como se fossem manequins.

Esse artifício, somado ao ambiente realista e a sons distorcidos, resulta em um ambiente no qual a idéia de viagem no tempo e perda de referência é reforçada.

A seguir, estudos: imagens preliminares de alguns personagens, a serem melhoradas com texturização e iluminação apropriadas no ambiente do game.

 

O jogador viaja no tempo e se vê, de repente, em uma São Paulo de 90 anos atrás. Ele vaga pelos ambientes e vê pessoas paralisadas, presas a um tempo que não é o seu. Essas pessoas, no entanto, estão vivas e agindo. Mas o jogador só pode ouvir ecos, vozes distorcidas. É por meio delas que vai entendendo a trama que acontece no ambiente.

A partir de uma pesquisa histórica (sobre quais assuntos faziam sentido em 1918) e de um esforço de criar um ambiente de videogame, com tensão, algum drama, histórias que vão aos poucos se montando e fechando, criamos uma série de falas para os personagens.

Quando o jogador se aproxima de qualquer um dos personagens ou grupos destes, ouve falas fragmentadas. Criamos frases autônomas, situações, e realçamos palavras-chaves, que vão orientar o jogador. A alternativa de diálogos explícitos nos pareceu, desde o início, pouco apropriada para a mídia utilizada. Optamos por texturas de sons, isto é, palavras mal e mal discerníveis, mas que permitem a apreensão de uma emoção e uma trama.

Feito isso, gravamos as falas, com vozes de quatro atores, e as mixamos. Uma vez que trabalhamos com texturas de sons,

(a) há frases ditas ao mesmo tempo;
(b) há frases ditas ao contrário; e
(c) a mesma frase é repetida com pequeno deslocamento ou eco,

É importante ter em mente que essas frases devem fazer sentido sozinhas e conter palavras fortes.

Não são diálogos.

Em negrito, as palavras a enfatizar, mas com cuidado para que nada pareça discurso.
As falas foram divididas em blocos distintos por assunto e situação, a saber:

(a) falas na biblioteca (poesia parnasiana);
(b) falas nas salas de aulas na escola preliminar;
(c) falas durante as aulas de ginástica;
(d) falas das crianças nos corredores e pátio;
(e) falas para a palestra de Amoroso Costa;
(f) falas no saguão, entre pessoas que esperam a palestra; e
(g) falas no corredor, entre professores ou normalistas.

Para exemplificar, abaixo mostramos as “Falas no corredor”:

Você viu o Mon coeur balance, do Oswald?
Blasé.
Cacete.
A Deisy saiu pela porta dos fundos. 
A estudantada vai se reunir no porão hoje à noite.
Um recital de poemas modernos no porão?
Você viu o quadro amarelo da Anita Malfati?
Estranho.
Moderno.
Ousado.
Estupendo!
E essa gripe?
É a Gripe Espanhola!
Esta morrendo muita gente.
As pessoas estão se matando na Europa.
É a Grande Guerra.
Haverá um armistício?
E os bolcheviques?

Onde está o japonês?
Deisy ainda está no Brás?

Vamos ao Teatro Municipal hoje?
Haverá recital da Magda Tagliaferro?

O laboratório de Pedagogia Experimental é um tormento.
Por que fazer testes psicológicos?
Eu é que devo decidir qual minha vocação.

Dizem que o professor Ugo Pizzoli é um gênio.

Não gosto daqueles cronoscópios.
Isso é tudo ultrapassado.
É positivismo velho.

Quem acredita hoje em quimografia?
Ninguém passa no teste do criptoscópio.

O Pangraforevelador decide quem tem vocação para as artes gráficas.

Bobagem!
Asneira!
Sandice!

Esses positivistas são uns sonsos.

Alguém foi convidado para a festa?
Prefiro ir ao teatro.
Os ricos preferem os parnasianos e os positivistas.

Pelo menos Mario de Andrade faz a Paulicéia respirar.
É a modernidade.
Só mesmo com uma revolução!

A cidade está uma balbúrdia.
O prefeito é um doidivanas!
Arre! Quase fui atropelado por um bonde.

III – DESENVOLVIMENTO DO AMBIENTE DO BRÁS


Depois da modelagem e texturização da garçonnière e da Escola Normal, a próxima etapa é o desenvolvimento de uma região do bairro do Brás. O local é importante para a dinâmica do game, pois lá circulam vários personagens, como a protagonista Deisy.

O modelo em desenvolvimento abrange

(a) o mercado;
(b) a estação de trens;
(c) as casas populares;
(d) o armazém;
(e) a casa de tolerância; e
(f) a fábrica de absinto.

A seguir, mapa e croquis preliminares da construção do ambiente do Brás.

Croqui inicial do ambiente no Brás  
 

CRÉDITOS DO GAME COZINHEIRO DAS ALMAS
GRUPO POÉTICAS DIGITAIS (ECA/USP)


Coordenação:
Gilbertto Prado
Argumento: Jesus de Paula Assis
Roteiro: Jesus de Paula Assis, Paula Janovitch e Gilbertto Prado
Design: Lívia Gabbai, Luciano Gosuen, Hélia Vannucchi e Fábio Oliveira
Programação: Gaspar Arguello e André Furlan

Colaboração: Raul Cecílio Júnior, Ricardo Irineu de Sousa, André Kishimoto, Rafael Rodrigues, Sílvio Valinhos, Mônica Ranciaro, Natália Gagliardi, Paula Gabbai, Marcos Cuzziol, Maurício Taveira e Eliane de Oliveira Nunes.

Endereços:
http://www.cap.eca.usp.br/poeticas/?page_id=28;
http://www.cap.eca.usp.br/poeticasdigitais.


Referências


PROJETO “COZINHEIRO DAS ALMAS”. Coordenação de Gilbertto Prado. Desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Poéticas Digitais da ECA/USP, 2010. Disponível em: <http://www.cap.eca.usp.br/poeticas/?page_id=28>.

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1 Sobre o Projeto “Cozinheiro das Almas”, textos também estão disponibilizados online em http://www.cap.eca.usp.br/poeticas/?page_id=28.