IMAGENS DA IRREALIDADE ESPETACULAR
Juremir Machado da Silva
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A realidade é um imaginário. Sólida como um cubo de gelo. Dela, só existem imagens e aproximações sucessivas. Flagrantes de um eterno movimento em espiral. Evaporações constantes em nome da estabilidade. O real é um estado intermediário entre dois picos de entropia. A grande magia do real consiste em simular o que não é: uma verdade absolutamente externa ao observador. O real objetivo sempre depende de uma adesão ou de uma crença. Toda realidade é uma construção social recortada pelo trajeto individual. Se essa afirmação pode parecer excessiva, é possível dizer que, ressalvadas as “realidades primárias” – uma árvore não é uma mesa e uma maçã é uma maçã –, todo o resto passa por um longo processo de objetivação e de sedimentação. [...] Precisamos de um conjunto de pressupostos alternativos ou – uma vez que esses pressupostos serão muito gerais, fazendo surgir, por assim dizer, todo um mundo alternativo – necessitamos de um mundo imaginário para descobrir os traços do mundo real que supomos habitar (e que, talvez, em realidade não passe de outro mundo imaginário). (FEYERABEND, 1975, p. 42-3; grifo do autor).O incontornável Feyerabend provocou um deslizamento conceitual cujos efeitos ainda se fazem sentir. Em suma, a sua questão é de uma simplicidade constrangedora: de que é feito o real científico? De imaginação e de imagens. Não uma imaginação qualquer. Somente a imaginação que produziu imagens capazes de dar ao sentido provisório aquilo que se apresenta definitivamente como alheio ao sentido em si. Qual é, por exemplo, a realidade de um julgamento de gosto? Por que uma obra literária ou cinematográfica é considerada de qualidade e outra não? Como se estabelecem os critérios de julgamento? Por mais que se procure dar um estatuto de exterioridade ao gosto, ou, noutra perspectiva, kantiana, de interioridade desinteressada a certo tipo de gosto, os mecanismos de justificação de uma escolha jamais conseguem superar a imanência histórica, o jogo de forças sociais e a circularidade auto-explicativa: “A obra é boa porque o público a considera boa.” “A obra é boa porque a crítica a considera boa.” “A obra é boa porque corresponde aos critérios previamente fixados de qualidade.” “A obra é boa porque uma autoridade, reconhecida como tal, a define assim.” O que é uma autoridade? Como se constitui uma autoridade? Qual a extensão do poder de uma autoridade? Como, inapelavelmente, invalidar uma recusa de participação num juízo assentado? Diante da afirmativa, “não suporto James Joyce”, o que se pode dizer objetivamente? Em geral, as “refutações” a esse tipo de postura são formas de desqualificação pretensamente objetivas: — Mau gosto; — Falta de cultura; — Ausência de refinamento; — Falta de sensibilidade estética apurada; — Ignorância; — Conservadorismo; — Estupidez. Aquele que sustenta um gosto, dado como uma realidade ainda não percebida por aqueles que o contestam, atribui-se qualidades positivas e superiores: percepção sofisticada, abertura ao novo, sensibilidade aguçada, formação adequada, cultura etc. Ao outro, o que não compartilha os seus julgamentos, atribui todas as qualidades negativas imagináveis. O senso comum percebe nisso duas situações: 1) uma obra é boa quando satisfaz um público amplo; 2) uma obra é boa quando satisfaz um público restrito (críticos). Ou seja, uma obra é boa quando funciona. Em outras palavras, uma obra é boa quando alguém a vê como tal e a defende nalgum tipo de arena. Tudo isso é óbvio. A questão relevante, porém, aparece no momento em que, estabelecido o conflito de julgamentos, pretende-se “decidir”. Como fazer? A decisão é sempre parcial, embora, consideradas as forças em confronto, haja sempre uma imposição capaz de durar um certo tempo. Não é possível chegar a um consenso. Se alguém não gosta de James Joyce, por uma das tantas razões existentes, ninguém poderá objetivamente ver nisso um erro. Toda realidade é imaginária. Alguém poderá argumentar de outra forma. Assim: é impossível fazer de Zezé di Camargo e Luciano músicos superiores a Mozart e Beethoven. Mas, para o público de Zezé di Camargo e Luciano, não há dúvida quanto a isso. A escolha já se deu. Ou não houve nem haverá escolha. O sofisticado ouvinte de Mozart não se sentirá tocado pelos sertanejos. Os ouvintes dos sertanejos não se sentirão tocados por Mozart. Um poderá dizer do ídolo do outro: ele não sabe nos tocar. O amante de Mozart poderá alegar que um músico sertanejo jamais conseguirá produzir aquilo que só o gênio alcançou. O amante da música sertaneja poderá alegar que isso não faz sentido, pois uma arte genial que não toca o público permanece estranha, sendo valorizada somente por um critério de dificuldade de produção. O argumento mais comum na defesa da arte erudita é este: só a educação pode levar à fruição desse tipo de cultura exigente e altamente sofisticada. Existem dois problemas aí: 1) Algo que exige uma educação prévia para ser compreendido escapa ao projeto da universalidade espontânea. Ninguém é educado para apreciar a beleza do pôr-do-sol. A educação é um adestramento. Logo, aquilo que exige educação implica uma formatação; portanto, não corresponde a uma fruição desinteressada. 2) Pessoas com alto nível de educação formal e de tradição familiar não necessariamente admiram ou fruem certas obras da cultura erudita. Populismo versus elitismo? Talvez. Por que para entrar na universidade é preciso saber quem foi José de Alencar e não quem foi o diretor de Casablanca? Ou quem compôs “Brasileirinho”? Por que a literatura tem mais importância do que o cinema, a música popular, a cultura de massa? Há objetividade nisso ou apenas um vestígio de uma tecnologia do imaginário — o livro de ficção — predominante no século XIX? Há um sistema claramente circular de classificação dos indivíduos a partir de conhecimentos aleatórios: a) a sociedade decide que é importante saber quem foi José de Alencar; b) um estudante aprende quem foi José de Alencar; c) num concurso, o candidato responde acertadamente quem foi José de Alencar; d) o candidato, por ter respondido corretamente a esse tipo de questão, é selecionado para ser auxiliar de alguma coisa numa repartição pública qualquer. Fica evidente que a) o conhecimento em questão não incide sobre a atividade do escolhido; b) na ponta final, o conhecimento em questão responde a uma escolha arbitrária feita na ponta inicial; c) o conhecimento em questão serve apenas como elemento de seleção, de classificação, de eliminação do excedente. Em resumo, serve para fazer concursos. Poderia ser qualquer outro conhecimento. No caso, porém, trata-se de um conhecimento legitimado que assume uma condição de realidade objetiva. No programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, as disputas são definidas com base em informações arbitrárias internas: quem foi o primeiro a ser excluído do programa? Quem deu o primeiro beijo? Qual era a cor do vestido de x no dia y? A funcionalidade do conhecimento é um dos tantos mundos paralelos ao dito real. Assim como o virtual é um mundo paralelo ao chamado presencial. Todos esses mundos apoiam-se em vários eixos, um deles é sempre o do suposto “real propriamente dito” (o homem que manipula o teclado do seu computador etc.). O gosto revela-se um caso extremo de irrealidade sintomática. Mas o mesmo irreal atravessa o vivido como um fantasma em busca do próprio corpo. O real é sempre a imagem de uma ausência, a ausência do sentido. Imagem não quer dizer uma fotografia ou uma representação do existente. Pode ser também a marca de uma impossibilidade concreta, o índice de uma impossibilidade por excesso de existência. O real é sempre hiper-real. Só podemos aceder a ele através das suas imagens, ou seja, daquilo que o apaga, que o nega, que o denuncia. Assim como o replay de um gol o torna mais real que o real e o conserva para sempre, esclarecido, na medida em que o acontecimento já não existe mais. A realidade, vale repetir, é sempre um cartão postal de si mesma. Enfim, como percebe impiedosamente Jean Baudrillard (1994, p. 17), “a realidade, em geral, é demasiado evidente para ser verdadeira”. Salvo que os imaginários não são verdadeiros nem falsos. A realidade é a imagem que temos dela num determinado momento e numa determinada situação. O grande problema enfrentado pelo pensamento neste começo de milênio está resumido assim por Michel Serres (2005, p. 255): “Como enxergar ou esboçar a paisagem desse novo mundo, como descrever o tema deste livro ou o objeto singular que ele evoca? Essa nova concepção de natureza exige uma nova cartografia”. Esse é o dilema de qualquer reflexão que tenha por objeto a realidade das imagens, as imagens da realidade, o real como imagem, a imagem como realidade e a natureza como “paisagem” passível de interpretação e de conceituação. A realidade é uma convenção inevitável. Um juízo. Uma atribuição de sentido. Um sonho de pedra. Incandescente. Ou, como diz Jean Baudrillard (2005, p. 36), “a realidade, no momento de desaparecer, torna-se patrimônio da espécie e converte-se em algo semelhante a um direito do homem, um valor democrático, um valor a ser defendido”. Um imaginário. |
Referências
WINKIN, Yves (Org). La nouvelle communication. Paris: Seuil, 1981. |