O ESPAÇO LÍQUIDO*
 

Lucrécia D’Alessio Ferrara

I – O TEMPO E O ESPAÇO


Os conceitos de tempo e de espaço foram estudados por distintas correntes filosóficas desde a antiguidade pré-socrática, entretanto os comentadores do tema são unânimes em afirmar que é impossível reconhecer uma concepção unificada (Ferrater Mora, 2001, p. 685), mas enfatizam que tais conceitos ocupam posição central na construção do conhecimento ocidental.

Os conceitos de tempo e de espaço surgem intimamente relacionados, não só pelo papel que desempenham em relação ao conhecimento, mas por uma questão de natureza eminentemente epistemológica. Ou seja, dependendo do modo como conceituamos espaço e tempo, temos distintas características cognitivas. Se considerarmos espaço e tempo tomados em si mesmos, evidenciamos serem eles atingidos por inabalável lógica de identidade de raiz aristotélica; se os considerarmos em suas dimensões funcionais, é necessário perceber, entre ambos, um vínculo relacional, como postula a física da relatividade de Einstein.

Porém, ao lado dessa identidade absoluta ou dessa funcionalidade relacional que poderia unificar duas concepções, é possível estudar esses conceitos em relação às propriedades que os identificam e distinguem e, sobretudo, que os representam social e comunicativamente, qualificando-os como signos e linguagens que atendem às especificidades daquela representação. No desenho dessas propriedades, o tempo e o espaço são apreensíveis através das suas estratégias representativas e semióticas e das respectivas lógicas da comunicação que anunciam. Espaço e tempo são, como representação, espacialidades e temporalidades distintas e diferenciam os dois fenômenos no curso de uma experiência cognitiva e comunicativa.

A percepção de temporalidades e espacialidades corresponde a dimensões cognitivas de síntese que, se não nos leva a definir a natureza essencial do tempo e do espaço, nos permite precisar o desenho de temporalidades e de espacialidades na discriminação da experiência e no modo pelo qual, como signos, são representados e substituem unidades fenomênicas. Temporalidades e espacialidades correspondem às manifestações do tempo e do espaço como linguagens que os tornam perceptíveis no plano da cultura.

II – O ESPAÇO DO TEMPO HISTÓRICO


No âmbito científico da História, a Escola dos Anais (1929) colocou em evidência o conceito de tempo histórico e, ao transformá-lo em elemento chave para definir sua compreensão do registro do percurso histórico, produziu, ao mesmo tempo, uma síntese elucidante.

Nessa nova história, opõe-se uma “espacialização horizontal do tempo” a uma “espacialização vertical através do tempo” (Ariés, 1979, p. 234). Substitui-se uma ciência positivista por outra, sensível às diferenças dos lugares e capaz de apreender a história que a ciência pode construir através do tempo. Nessas diferenças, apreendem-se espacialidades para, através delas, flagrar temporalidades que, em fluxo, não poderiam caber na simples dimensão dos fatos, mas exigiam outro tempo de longa duração.

Esses deslocamentos parecem irrelevantes, mas podem nos revelar importantes aspectos da relação que se estabelece entre o tempo e o espaço na cultura contemporânea. A longa duração ou “história quase imóvel” ou “lentamente ritmada” (Burke, 1991, p. 131) que caracteriza a história das mentalidades parece imobilizar o tempo ao desenvolver uma espécie de arqueologia das tendências culturais que parecem negar a evolução do tempo. Ou seja, essa permanência de traços culturais que conservam as marcas de suas ancestralidades faz do tempo um macro-espaço onde se “lugarizam” os sentidos da cultura.

Apreender essas “lugarizações” do tempo no espaço nos leva a retomar a famosíssima tese de Einstein, na Teoria da Relatividade, em que propõe a fusão do tempo com o espaço ou uma espacialização do tempo em um universo em expansão (cf. Hawking, 1989, p. 35-60). Porém, mais do que entrar no emaranhado território das hipóteses e teorias da física, interessa-nos perceber que as representações do tempo e do espaço na dinâmica da cultura são capazes de se organizarem em temporalidades e em espacialidades intercomunicantes, ainda que a própria história nos fale mais das primeiras do que das segundas. Essa primazia repete a hegemonia clássica do tempo sobre o espaço que, por sua vez, confirma a característica do conhecimento tradicional quando, centrado durante séculos sobre a razão idealista lógica ou transcendental, faz do sujeito o eixo do conhecimento. Percorrer não apenas as relações entre o tempo e o espaço, mas as características do espaço no tempo, leva a entender o modo como a cultura ocidental se nutre de espacialidades e a perceber como elas interferem nos distintos processos comunicativos que vão das mensagens às mediações. Estabelece-se entre o tempo e o espaço um diálogo que faz com que o tempo se espelhe no espaço e nele construa sua materialidade sígnica.

III – O TEMPO E A CRONOTOPIA


No diálogo entre o tempo e o espaço, é construída a dinâmica que caracteriza a história da cultura e o modo como os homens nela se articulam. Entretanto, essa dinâmica supõe indeterminação, pluralidade e, sobretudo, instabilidade que constituem desafios epistemológicos a serem enfrentados. Essa é a operação que está no eixo de conceitos vitais para a ciência desenvolvida nos séculos XX e XXI. Como resposta possível a esse desafio, Bakhtin criou os conceitos de polifonia e diálogo que recuperam a longa duração na construção de mentalidades e no espaço de manifestações da cultura.

Ao lado daqueles conceitos que procuravam criar condições de estudo dos enunciados no nível da oralidade, o mesmo estudioso formulou outro conceito vital que, embora inicialmente tenha sido aplicado no âmbito dos estudos literários, o próprio Bakhtin aponta sua vitalidade no estudo de várias manifestações culturais: trata-se do conceito de cronotopo que Todorov valoriza e realça, apontando suas possíveis inferências:

  • o cronotopo aponta as construções do tempo e do espaço e constitui uma modelização da cultura;
  • o cronotopo é um conceito que tem sua pragmática científica voltada para a necessidade de controlar ou sintetizar a multiplicidade de manifestações dos enunciados encontrando pontos de contacto e semelhança que permitem criar um substrato comum reconhecível;
  • esta modelização permite controlar a multiplicidade das manifestações culturais e corresponde a uma operação eminentemente científica, tendo em vista a legibilidade daquelas manifestações.
Considerando a legitimidade dessas inferências e a partir delas, cabe perguntar: que relação se estabelece entre tempo e espaço como constituintes de um cronotopo? Ou seja, a questão não está em saber como tempo e espaço se manifestam individualmente mas, de que modo se relacionam como unidade espaço/tempo.

A história dos eventos volta-se para o registro dos signos que permitem ler como a cultura é o lugar onde o tempo se diversifica ou como o espaço é sensível aos movimentos do tempo e se deixa marcar por eles. Ou seja, para aquela história, o tempo marca o espaço temporalizando-o e tornando-o histórico, preenchido pelas marcas que escrevem a história da cultura. Hegemônico, o tempo estabiliza o espaço através das marcas que são suas testemunhas e o apresentam como escritura. A história desse tempo se escreve através de eventos, personagens, monumentos, emblemas que se estruturam no âmbito do particular, do restrito solidamente situado. Esse espaço é, sobretudo, marcado pelo tempo em suas lembranças, como dados estanques definitivamente inscritos no passado. Nesse caso, essas marcas do tempo são dados e se apresentam, comunicativamente, como mensagens compactadas e livremente repassadas do tempo para o espaço, da história para a cultura, entendida como estrutura linear e simplificada. Talvez, nesse sentido, o próprio conceito de cronotopo esteja superdimensionado em sua possibilidade epistemológica, porque esse espaço dominado pelo tempo reedita as clássicas dicotomias constituídas pelo sujeito e pelo objeto. Entretanto, esse poder é tão exclusivo e incontestável que o próprio tempo não se impõe como questão científica, senão na modernidade, e constitui sua característica, como visão de mundo:
A história do tempo começou com a modernidade. De fato, a modernidade é, talvez, mais do que qualquer outra coisa, a história do tempo: a modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história. (Bauman, 2001, p. 128-129).

IV – O ESPAÇO E TOPOCRONIA


Porém, se a consciência científica do tempo sobre o espaço é obra da modernidade, ela acompanha as aventuras desse momento histórico quando se subdivide ou se dilacera entre a utopia modernista e as negações pós-modernas na constituição de uma modernidade de longa duração e resistente ao desgaste da história dos eventos.

No século XIX, confrontam-se o espaço e o tempo, porque esse conflito é evidenciado pelo desenvolvimento tecnológico que inaugura o mundo moderno, dominado, inicialmente, pela Revolução Industrial Mecânica e, depois, pela eletrônica. Observa-se a caracterização de distintas espacialidades e diferentes relações entre o espaço e o tempo. Na realidade, aquelas revoluções não foram apenas “industriais”; provocaram alterações profundas nos campos social, cultural e econômico.

A Revolução Industrial Mecânica foi também uma revolução dos transportes que teve nas ferrovias, nas locomotivas e nos navios suas principais conquistas. Essa temática tem sido exaustivamente estudada por economistas e sociólogos, tendo em vista a sua importância para a compreensão do mundo moderno, e da relação que começou a se estabelecer entre tecnologia e cultura, relação decisiva para a análise do contemporâneo.

Com o desenvolvimento dos meios de transporte, o deslocamento surge como questão que cria uma nova concepção de espaço, muito distante daquele uniforme e controlado que caracterizava a perspectiva linear renascentista, e daquele espaço centralizado, controlado ideologicamente pelos interesses comerciais que se expandiam da Europa para além-mar.

No mundo moderno, o deslocamento permitiu que a distância se tornasse relativa e impusesse à percepção a realidade de outros espaços que, com a crescente facilidade de acesso, multiplicavam-se, ampliavam-se e exigiam que o tempo, antes dominado mecanicamente pela medida cronológica do relógio, se reduzisse, fazendo com que o passado se distanciasse cada vez menos e aproximasse do futuro. Com a redução da distância, o deslocamento fez com que o tempo se metaforizasse no número e na rapidez dos deslocamentos. O tempo se multiplicava e se ultrapassava no espaço que, em deslocamento, se apresentava como seu ideal. Surgia a tentativa de criar um espaço universal, homogêneo e sem limites culturais. O sonho desse amplo território assinalou a utopia modernista.

Entretanto, ao dar dimensão concreta à distância, o deslocamento permitiu a criação de um espaço fluido, dominado pelas técnicas e equipamentos que o propiciavam: ferrovias, avenidas, auto-estradas, rotas, trens, automóveis, navios. Ora, esses equipamentos são escrituras situadas historicamente e marcos técnicos do espaço para medir e reduzir o tempo. São equipamentos do espaço no tempo, uma topocronia. Ou seja, é possível identificar o tempo moderno pelas técnicas que assinalam a construção do seu espaço fluido, em deslocamento. Porém, a duração desse tempo exige que à caracterização entre pontos, territórios, continentes e cidades seja adicionada a contabilidade do tempo que se marca pela velocidade com que se percorre a distância. Ao deslocamento e à distância que marcam a diferença entre espaços, se acrescenta a velocidade da distância percorrida entre pontos em deslocamento, ou seja, o tempo com que se elimina a distância. Esse tempo medido estabelece uma cronologia do espaço ou um espaço do tempo, outra característica da topocronia.

Reduzindo-se o tempo, vemos ampliar-se o espaço para percorrer a distância entre pontos. Porém, enquanto a técnica domina o espaço “entre”, perde-se a possibilidade de mediação do tempo sintetizado pela norma da medida cronométrica que, em linearidade, percorre o passado para atingir o futuro. Um tempo medido pelo fluxo de dias ou horas, minutos ou segundos, meses ou anos ou décadas.

A velocidade parece transformar o tempo em espaço ou a velocidade faz do passado um futuro ou faz da distância o resultado do deslocamento: percorrer uma distância de 200 km a 60 ou 20 km por hora nos faz perceber, de maneira distinta, a distância em deslocamento. Essa topocronia é resultado das técnicas da velocidade que caracterizam a Revolução Industrial Mecânica e marcaram definitivamente o mundo moderno. Estamos no domínio da dromosfera de Paul Virilio:

Para Einstein o presente é já o centro do tempo. Para ele, o passado do Big-Bang original não é, não pode ser cientificamente esse centro antigo. O centro verdadeiro é sempre novo, o centro é perpétuo, ou mais exatamente ainda, o “presente” é um ETERNO PRESENTE. Aos três tempos da sucessão (cronológica), passado, presente, futuro, Einstein substitui um tempo de exposição (cronoscópico ou dromoscópico) subexposto, exposto, sobreexposto. (Virilio, 2000, p. 178-179; grifos do autor).
Assim como a produção em séries lineares desestabilizava o fazer, pois o reduzia ao momento de cada etapa produtiva, a velocidade permitiu superar a percepção da distância entre dois pontos e banalizou não só o deslocamento, mas a percepção do tempo, que só se fazia notar através da diferença da paisagem entre os espaços atingidos. A síntese perceptiva se fazia não mais pelo tempo, mas pelo espaço que escrevia a metalinguagem que marca o fim da história comandada pelo tempo dos eventos, para fazer emergir uma história comandada pelo espaço. Porém, essa nova história surge como perversidade que demarca o fim de um modo de viver e de pensar a partir de paradigmas de estabilidade e segurança. Instala-se a desconfiança do tempo no espaço da cultura e inaugura-se outra percepção da história, agora em metalinguagem de formato digital, que torna impositiva a percepção do espaço.

V – ESPAÇOS DO ESPAÇO


A perversidade dessa metalinguagem também se desloca e em velocidade digital. O domínio do registro eletromagnético, uma das grandes conquistas da ciência contemporânea, faz com que o movimento seja controlado em tempo real de qualquer ponto do planeta. Os satélites artificiais monitoram o deslocamento das estrelas, das águas, da terra, das cidades, das sociedades, dos grupos, das pessoas e dos comportamentos. A comunicação desses dados, imagens e notícias é imediata, simultânea e sem canais intermediários. Agora, o espaço é global e o tempo, real, ou seja, sem a medida cronométrica que o submetia à precisão de calendários ou relógios: o espaço de lá está aqui e o tempo de ontem é hoje, presente. Convergem o ontem e o hoje, o passado e o futuro, o tempo e o espaço. As técnicas das telecomunicações, o satélite, o laser, a fibra ótica engoliram a distância, banalizaram definitivamente o deslocamento: a aceleração é a nova medida da velocidade.

Em medida de presente, o tempo é o espaço e ambos são heterotópicos ou heterocrônicos em relação ao domínio que incide igualmente sobre ambos e em escala planetária. Nesse eterno presente, a aceleração é simultânea ao tempo e ao espaço.

Compreender essa interdependência constitui a base para a empiricização desse novo tempo/espaço único que é o grande ator dessa modernidade líquida e sempre nova. Porém, a compreensão dessa interdependência não se faz sem entraves, porque é desconcertante, visto que incide sobre a linearidade do tempo que era paradigma para as interpretações filosóficas e as certezas físicas. Agora, já não se pode falar em flecha do tempo, mas o espaço é contínuo e, na sua fluida liquidez, engole o tempo, banalizando-o.

Os ataques a essa violência do espaço sobre o tempo é tema para a interpretação de inúmeros autores ocupados e, talvez, aturdidos, com essa impossibilidade de registrar ou reter a mudança para apreender-lhe os desenhos e prevenir os destinos. Perdeu-se a convivência com o tempo demorado que permitia a interpretação e com ela a possibilidade de rotina que firmava identidades e reconhecimentos. O fim da interpretação tem sido várias vezes retomado por autores reconhecidos, como Eco (1990) e Vattimo (1999). Sem esse tempo para a síntese, perdeu-se a oportunidade de se ver para aprender ou vive-se uma mudança de paradigma para esse conhecimento.

Como nova realidade sócio-histórica, o globalismo é também um novo paradigma epistemológico e isso implica na mudança do tempo e do espaço como categorias relacionadas ao modo de pensar; essa é a mudança que impregna a cibercultura e faz com que a analisemos para além das novas possibilidades tecnológicas das comunicações no mundo contemporâneo.

VI – O CIBERESPAÇO COMO NOVO PARADIGMA DO CONHECIMENTO


Deslocando-se sem sair do lugar ou projetando-se para o futuro para reencontrar o passado, o ciberespaço encontra sua escritura no modo de se situar no tempo e no espaço: um modo desencontrado e divergente, disperso e hetero, diferente daquilo que se viveu e poderá ser vivido, porque o tempo não é real, pois não existe o irreal, e o espaço não é perto ou distante, porque sem se deslocar, simplesmente é. Esse espaço-tempo heterodoxo constitui não uma unidade, mas o discurso do espaço sobre o tempo ou as nuances do tempo através da fala do espaço ou pelo que essa fala sugere sobre si mesma ao dizer o tempo. Essa fala assinala o fim do tempo como narrativa da duração que situava e classificava historicamente a vida entre “antes” e “depois”.

Essa fala apresenta um novo paradigma epistemológico que aponta a dúvida sobre a concepção que entendia o tempo e o espaço como realidades simétricas ou, no máximo, como realidades dialéticas. Ao contrário, sem sínteses, as contradições se impõem e o tempo e o espaço se tornam heterodoxos e, sem medidas estáveis, produzem o conhecimento do indeterminado, do ambíguo, do indecidível. Na realidade, o conhecimento ciber parece ter decretado a incapacidade da cultura para produzir sua narrativa. Apesar de sua fragilidade, tem sido possível entender sua gênese, sua arqueologia e tecer o prognóstico de seu desenvolvimento.

O tempo da cibercultura é aquele da aceleração que vai além da velocidade porque não supõe mobilidade, mas se vive em aceleração sem sair do lugar e, no mesmo instante, as emoções de ontem podem fazer viver o amanhã. Em aceleração, tempo e espaço se sobrepõem no presente, entendido não como tempo entre o passado e o futuro, mas como continuidade de instantes aqui e agora. Na cibercultura, não há como confundir linearidade e continuidade.

Entretanto, essa é a realidade percorrida, não sem dificuldades de entendimento, porque surge desconexa, se traduzida em um tempo dominado pela medida cronológica. Na cibercultura, é urgente compreender esse engano e atentar para a percepção do presente sempre difuso, mas que pode ser adivinhado ou imaginado na caracterização imprevista de um tempo/espaço do presente.

A dificuldade de interpretar o contínuo presente está em desistir do tempo como parâmetro ordenador do espaço vivido e em admitir que é possível viver, em aceleração e intensidade contínuas, todos os tempos e espaços. Cibercultura é o contínuo acelerado. Porém, enfrentar esse contínuo tem sido adiado e, portanto, é natural que se tente entender a cibercultura como domínio do tempo sobre o espaço, falseando, porém, sua interpretação como mudança de paradigma epistemológico da cultura. A dificuldade de pensar esse novo paradigma como relação contraditória entre o tempo e o espaço nos tem levado a fixar a cibercultura sob a égide do tempo.

Essa dificuldade é evidente na tendência crítica do momento ao reduzir o impacto dessa mudança de paradigma, a impasses e indecisões presentes em raciocínios que se articulam em binômios. Além do binômio espaço e tempo e da verificação de autoridade de um sobre o outro, há outros exemplares constantes: sólido e líquido, estável e instável, nomadismo e estabilidade, real e irreal, atual e virtual, territorialização e desterritorialização, o real e o possível, o único e o múltiplo.

A dificuldade de compreensão do contínuo do tempo no espaço ou vice-versa leva à impossibilidade de compreender aquilo que é, ao mesmo tempo, contínuo e heterogêneo, porque em transformação entre ser e ser mutável, entre tempo e espaço, entre ontem e agora ou entre aqui e lá.

VII – A CULTURA DO ESPAÇO CIBER


O espaço ciber é o contínuo que, sem princípio ou fim, tem como meta continuar. Esse contínuo é intrigante do ponto de vista epistemológico, porque desestabiliza uma das premissas clássicas da cultura ocidental presa à razão onisciente e fixa na temporalidade do sujeito.

O contínuo não se deixa agarrar na linearidade sólida do conceito: é comunicante ao enviesar a comunicação rotineira e, apesar disso, faz dela o grande desafio que perturba a ciência estabelecida: não se trata de saber o que se comunica ou como se comunica, mas o que se pode comunicar. Comunicar torna-se uma questão científica enquanto ética.

Como dobra do tempo no espaço contínuo ou vice-versa, a comunicação é obrigada a enfrentar sua ambiguidade. Já não convence ser instrumento ordenador da sociedade urbana funcionalmente operacionalizada por um juízo proposto como adequado para a conservação ou propagação dos bons costumes estabelecidos; também já não é instrumento fácil nas mãos de um poder político ou econômico que administra vontades e repertórios de um receptor passivo na adoção de interesses desconhecidos e longínquos. A massa se dissolve como objeto de manipulação, o público torna-se tão grande e diversificado que já não se sabe o que comunicar, porque não se conhece o receptor e, muito menos, o modo certo de atingi-lo. A comunicação já não é instrumento da ação no espaço social. A aceleração desestabiliza todos os programas e essa realidade impõe outros projetos incertos, vacilantes e submissos a constantes revisões. Temos um novo receptor que é, ao mesmo tempo, produtivo, reprodutivo e comunicativo. Misturam-se o tempo e o espaço, o emissor e o receptor, o consumo passivo e a crítica seletiva, cria-se um ambiente comunicativo que inaugura o “bios-midiático” (Sodré, 2002, p. 21) e manifesta outra modalidade topológica.

Nesse novo cotidiano, o receptor está envolvido em um plano de subsistência cotidiana que, de um lado, o desafia para conseguir melhores condições de vida que dependem de seu desempenho diário e de sua adaptação a condições possíveis em megalópoles; e, de outro lado, o expõe à produção acelerada de bens, que exaurem o consumo. Se a quantidade da oferta impõe uma recepção seletiva é, também, instável e volúvel. A demanda de bens se acelera e impõe, em ritmo semelhante, a renovação da oferta.

A própria aceleração tecnológica cria outro receptor, ativo, agitado, cada vez mais conectado e produtor de novos valores, sentidos e comportamentos. A cidade é o laboratório da espacialidade comunicativa, ou seja, já não é planejada ou organizada, mas simplesmente é o resultado de urbanizações insólitas. A cidade simplesmente surge, expande-se e auto-organiza-se tirando todo o proveito da experiência acumulada, à semelhança de uma retroalimentação que ensina a resolver o cotidiano, inaugurando outra subjetividade e outro sentido para o coletivo:

[...] a subjetividade é produzida através da cooperação e da comunicação, e por sua vez esta subjetividade produzida vem a produzir novas formas de cooperação e comunicação, que por sua vez produzem nova subjetividade e assim por diante. Nessa espiral, cada momento sucessivo da produção da subjetividade para a produção do comum é uma inovação que resulta numa realidade mais rica. Talvez devamos identificar nesse processo de metamorfose e constituição a formação do corpo da multidão [...]. (Hardt; Negri, 2005, p. 247-248).
Não admira que essa fragmentação seja desconfortante ameaça às soberanias políticas, econômicas, ideológicas e científicas: agora, tempo e espaço se sobrepõem, o presente está aqui, todos os lugares se confrontam mundialmente e o tempo e o espaço exigem ser vividos de modo acelerado.

Transformam-se o tempo, o espaço e o mundo do vivido que asseguravam o comunicar pré-ciber. Não há tempo para programas, porque o espaço é líquido e a informação não se oferece como produto acabado, mas exige ser produzida de modo sempre novo. O tempo se concentra no presente e todos os territórios parecem ser equivalentes em todos os lugares, se for mantida a insistência em compará-los com os lugares do passado recente do mundo em deslocamento e velocidade.

Nessa nova topologia, a memória se mobiliza no presente e, como decorrência, não se desloca, mas exige mudança como dado básico para aquele corpo que percebe um tempo-espaço em mediação esvaziado de passado à procura de identidade, conservação e desenvolvimento. Atuada no presente, essa memória já pertence ao espaço que se constrói em mediação colaborativa em todos os cantos do planeta. A rede mundial de computadores é o instrumento dessa memória/presente, porém não é senão um meio para uma memória agenciada pelo mundo de experiências do sujeito, a quem cabe construir outro lugar territorial, heterodoxo e topomidiático como comunicação de um tempo instantâneo. Desse modo, o espaço se manifesta no lugar em que se dá a informação, inaugurando uma geografia até então desconhecida. É a nova geografia montada pela diferença que se impõe como realidade cultural mundial e inelutável.

Nessa diferença, a emergência do lugar ocorre de modo inconstante e irregular. Patrocinada pela técnica, a informação em rede atinge os territórios do planeta e sua irradiação comunicativa carrega diferentes idades porque, construída pela memória, exige o intercâmbio com outros tempos e espaços que deixaram marcas em todos os lugares. É nesse ritmo impreciso que a heteromídia não programada constrói um espaço heterodoxo, rugoso na acumulação desigual dos seus tempos (Santos, 1996, p. 35), e que, embora sem alicerce, resiste, mas desconstrói as bases da opinião nas quais se apoiavam valores e reações do senso comum construídos no tempo passado.

Os indivíduos, as sociedades, os valores, as crenças e os cotidianos são díspares e é nesse conflito que se situa o novo sujeito de uma epistemologia pós-moderna, conforme a denomina Boaventura de Sousa Santos (2002). Em oposição ao sujeito recolhido em um conhecimento subjetivo e transcendental, esse novo sujeito se expande individual, coletiva e socialmente ao ser o agente dessa topomídia que nos obriga a rever a dicotomia sujeito-objeto, que se apoiava na razão que estruturou o conhecimento ocidental até meados dos anos 80 do século XX.

Este é o lugar científico e técnico dessa comunicação às avessas que, ao definir o lugar contemporâneo, se apresenta como mediação, mas se dissolve em opacos itinerários que não se deixam definir ou localizar, embora teçam a estranha geografia da cidade mundial conectada digitalmente. Esse espaço-lugar-mundial é criado por um cidadão do mundo. Entretanto, esse espaço não é público como aquele de decisão comunicativa ou de formação e consolidação da opinião social esclarecida que domina a cultura modernista. Ao contrário, ele é coletivo porque, além de espaço, é midiático, construindo interativamente e em eterno presente uma nova geografia global feita de semelhanças e diferenças entre os lugares do mundo.


Referências


ARIÉS, Philippe. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales. São Paulo: Edunesp, 1991.

ECO, Umberto. I limiti dell’interpetazione. Milão: Bompiani, 1990.

FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005.

HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto: Afrontamento, 2002.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis: Vozes, 2002.

TODOROV, Tzvetan. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Paris: Seuil, 1981.

VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

VIRÍLIO, Paul. A velocidade da libertação. Lisboa: Relógio d’Água, 2000.

____________________
* Uma versão ampliada deste ensaio foi publicada pela autora em Comunicação, espaço, cultura, lançado pela Editora Annablume em 2008.