O FIM DO ESTILO NA CULTURA PÓS-HUMANA
 

Lucia Santaella

 

Não é fácil definir estilo. A definição muito vaga e breve formulada por Proudhom de que “o estilo é o homem” é bem conhecida e foi citada exaustivamente. Para indicar apenas poucos autores, fizeram época os escritos de Leo Spitzler sobre o tema. Em Art and Illusion, Gombrich (1979) dedica um capítulo inteiro ao que ele chama de “o enigma do estilo”. No campo da literatura, Barthes (1971) discute "o artesanato do estilo" inaugurado por Flaubert. Sem desprezar as dificuldades apresentadas por essa questão enigmática, o propósito deste texto é explicitar a noção tradicional de estilo com a ajuda dos conceitos semióticos peirceanos de análise e, em segundo momento, problematizar essa noção no contexto da pós-modernidade e da cultura pós-humana.

I – Estilo à luz das categorias semióticas


A noção de estilo pode ser observada através de pelo menos três pontos de vista: (1) o ponto de vista do talento individual, (2) o ponto de vista histórico e, finalmente, (3) o ponto de vista da automatização do estilo.

1. Estilo e talento individual


Quando um indivíduo cria algo, digamos, uma composição musical, um romance, uma pintura, um filme, um vídeo, esse indivíduo torna-se um autor, quer dizer, alguém que é capaz de deixar marcas, traços de seu modo próprio de criar mensagens em um processo de signos com o qual lida. O autor é aquele que interfere de modo particular e pessoal em um processo de signos.

De acordo com o escritor argentino Jorge Luis Borges, nunca podemos estar seguros sobre o ponto exato em que a liberdade de um escritor termina e os constrangimentos da linguagem começam. Há sempre uma fronteira de luta: a luta com as palavras, no caso do escritor, ou a luta com os sons, com as cores, com as imagens, no caso de outras linguagens. É nas margens movediças entre as regras de um código e a habilidade para sabiamente transgredi-las, sem feri-las, que o talento individual aflora. Em suma: não há criação ou recriação de conteúdos sem a criação correspondente na forma, na configuração de uma mensagem.

Há pelo menos dois aspectos semióticos que merecem atenção na produção autoral de signos. Em primeiro lugar, as marcas de autoria funcionam evidentemente como índices de um dado talento individual. É por isso que um romance de Virginia Woolf, um quadro de El Greco, ou de Miró, um vídeo de Bill Viola, um filme de Antonioni, por exemplo, podem ser reconhecidos por aqueles que têm certa familiaridade com outras obras desses artistas. Nesse sentido, as marcas de autoria são indicadoras de um certo modo de criar próprio de um autor e isto é o que comumente recebe o nome de estilo. Entretanto, quais são as características do estilo? Qual é a natureza semiótica das marcas de autoria?

Em si mesmas, essas marcas são qualissignos. Não poderia haver estilo sem a interferência do autor na dimensão qualitativa dos signos que ele manipula. Algumas transgressões qualitativas nas regras determinadas de um sistema de signos é condição sine qua non para que o estilo se inscreva. É por isso que, como marcas de autoria, o estilo é sempre sui generis, peculiar, único, particular de um indivíduo. Nelas mesmas, e tomando o sistema de signos ao qual pertencem como contexto de referência, as marcas de autoria são qualissignos. Mas, na relação com o autor do qual partem, elas são índices.

Há ainda um aspecto semiótico adicional a ser observado. As marcas de autoria sempre se constituem em um conjunto de marcas cuja interconexão só pode ser icônica, quer dizer, as marcas estão conectadas por relações de similaridade. Há uma força de atração por semelhança entre as marcas de autoria e é isso que lhes dá a coerência necessária para seu funcionamento como índices de um certo autor. Tendo este tópico relativamente esclarecido, podemos passar para o segundo ponto de vista.

2. Estilo de um ponto de vista histórico


De acordo com Pound (1970, p. 42), há três tipos de autores: os inventores, os mestres e os imitadores. Os inventores são aqueles que criam. São capazes de extrair possibilidades novas, ainda não exploradas do processo de signos no qual estão imersos. "Descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo de um processo". É este o sentido em que podemos dizer que Picasso, por exemplo, criou o cubismo. Artistas e autores como ele não apenas têm seu próprio estilo, como também são inventores de um novo estilo histórico. Como um estilo se torna histórico? Minha hipótese é que os mestres e os imitadores são os responsáveis por levar um estilo individual até um patamar histórico e coletivo.

Os mestres são aqueles que se apropriam dos traços de estilo criados pelos inventores e que têm a habilidade de fazer uso desses traços de modo pragmaticamente efetivo. Combinam certo número dos processos criados pelos inventores e os usam tão bem ou ainda melhor do que estes. Invenções não são facilmente absorvíveis. A tarefa dos mestres é tornar um novo estilo mais amplamente conhecido, absorvido e aceito. Isto constitui a historicidade de um estilo.

Os imitadores, como o nome já diz, são aqueles que não são capazes de criar e, por isso, só são capazes de imitar. Eles não imitam os inventores, mas os mestres. Estes últimos são mediadores entre os inventores e os imitadores. Enquanto os mestres são responsáveis pela difusão do estilo com respeito às suas qualidades originais, os imitadores transformam os aspectos qualitativos do estilo em procedimentos habituais. Transformam portanto o estilo em estereótipo.

Estereótipos são traços de estilo que perderam as marcas do talento individual. Originalmente criativas e produtivas, as marcas tornam-se repetitivas e impessoais. Enquanto o estilo é proeminentemente composto de qualissignos icônicos, o estereótipo é dominado por legissignos convencionais. Um estilo morre lá onde o estereótipo nasce. O oceano de estereótipos em que nossa vida cotidiana está imersa é um indicador do grande número de imitadores de que a produção de linguagem nos meios de comunicação de massa está povoada, o que nos aproxima do terceiro ponto de vista.

3. A automatização do estilo


Desde o advento da revolução industrial, começando com a câmera fotográfica, apareceram máquinas que funcionam como extensões de órgãos sensórios humanos especializados, a saber, extensões do olho e do ouvido, da visão e da escuta.

Em outra ocasião (Santaella, 1996, p. 195-208), dei a essas máquinas o nome de máquinas sensórias, quer dizer, construídas graças à pesquisa científica sobre o funcionamento dos órgãos perceptivos humanos, especialmente o olho. Trata-se de aparatos criados com a finalidade de simular o funcionamento dos órgãos sensórios. A rigor, esses aparatos não são simplesmente extensões dos sentidos, como queria McLuhan (1964), mas, mais propriamente, máquinas semióticas (Nöth, 2001). Quando digo que não se trata de meras extensões dos sentidos, chamando-os de máquinas semióticas, quero dizer que esses aparatos internalizaram no seu modus operandi um certo nível de inteligência, mesmo que seja, nesse estágio, um tipo de inteligência que não vai além da imitação do funcionamento dos órgãos sensórios humanos. Entretanto, não se pode negar que tenham pelo menos alguma inteligência, pois, como simuladores dos órgãos sensórios, são capazes de produzir e reproduzir novas entidades que, nos últimos dois séculos, vêm provocando profundas mudanças na face do planeta. Essas novas entidades são signos tecnologicamente produzidos, imagens e sons com que o mundo passou a ser habitado e com os quais convivemos em cada campo, canto e esquina do nosso cotidiano.

As consequências dessas máquinas ou aparatos para o problema do estilo não podem ser subestimadas. As máquinas semióticas sensórias automatizam o gesto humano da criação. Consequentemente, essas máquinas passam a funcionar como parceiras no ato de criar. Se concebemos o estilo como marcas de autoria, essas marcas passam a ser compartilhadas com as máquinas em uma mistura de personificação e automatização. Na fotografia, esse hibridismo é claro. Quanto mais o olho do fotógrafo estiver em simbiose com o olho da câmera, melhor será o resultado do seu ato.

Quando chegamos à segunda geração de máquinas inteligentes, ou seja, as máquinas cerebrais, como são os computadores, a relação simbiótica entre o humano e a máquina torna-se mais acentuada. O computador não é uma máquina mecânica como era a câmera fotográfica tradicional. Ele não é um simples simulador de nossos gestos e sentidos, mas de nossa mente. As implicações das tecnologias da inteligência contemporâneas para o problema do estilo são enormemente complexas. Proponho examiná-las brevemente no contexto das culturas pós-moderna e pós-humana.

II – A saturação de estilos na era pós-moderna


De saída, é importante dizer que não tomo a cultura pós-moderna e a cultura pós-humana como sinônimas. Embora apresentem alguns pontos em comum, há diferenças entre elas que espero poder esclarecer até certo ponto no que se segue.

Os termos pós-moderno e pós-modernidade têm sido objetos de muitos debates e controvérsias. Há, todavia, certo consenso no entendimento que contemporaneamente se tem deles. A tese mais ou menos aceita é a de que as práticas culturais, políticas e econômicas passaram por profundas transformações desde os anos 1970. Tais mudanças anunciaram uma revolução nos acontecimentos humanos, mais vastos e mais profundos do que quaisquer outros que tenham acontecido na geografia histórica do capitalismo. Segundo Harvey (1993), as marcas do pensamento pós-moderno podem ser sintetizadas no privilégio da heterogeneidade e da diferença como forças liberadoras, na fragmentação, indeterminação e intenso descrédito em relação a todos os discursos universalizadores e globalizantes.

De fato, desde Foucault, desenvolveu-se uma crescente descrença na possibilidade de uma metateoria por meio da qual todas as coisas podem ser unidas ou representadas. Foi Foucault quem nos instruiu para desenvolver a ação, o pensamento e o desejo na proliferação, justaposição e disjunção e a preferir a multiplicidade à unidade, a diferença à identidade, e a entrar nos fluxos e arranjos móveis em detrimento dos sistemas.

Em lugar dos princípios universais e generalizantes que costumavam conferir legitimidade aos discursos culturais tradicionais, temos agora a pulverização dos discursos na relatividade de redes flexíveis de jogos de linguagem que são otimizadas na produção e distribuição das novas tecnologias de comunicação. De resto, todo o discurso social pós-moderno tornou-se, ele mesmo, uma rede multiforme de jogos de linguagem, em cuja disseminação o sujeito se dissolve, disperso em nuvens de elementos narrativos.

Este modo de compreender a pós-modernidade deixa claro que não se pode restringi-la a mudanças meramente estilísticas na arquitetura ou nas diferentes artes, tal como alguns estudiosos tendem a interpretá-la. As mudanças estilísticas, desde a década de 1970, o frenesi de citações, que marcaram a passagem da era moderna à pós-moderna, foram, a meu ver, apenas sinais de alerta de transformações culturais mais profundas. Entretanto, mesmo estando alertas a essas mudanças, não se pode negar que uma de suas características mais evidentes está, de fato, na multiplicidade de estilos que nela convivem. Essa inflação e sincronização de estilos diversos provenientes de tempos e espaços distintos, as misturas intrincadas entre realidades globais e locais, que são chamadas de glocais, tudo isso traz consigo a morte do estilo concebido como indicador de um período histórico.

O exemplo da moda é ilustrativo dessa morte. Nas sociedades pós-modernas, o ritmo das tendências da moda é acelerado, produzindo uma confusa multiplicidade de modelos e cenários. Condenada não apenas a manter a superestimulação do novo, mas também a acelerá-la, das últimas décadas do século XX até hoje, a moda tem estado destinada a levar o ritmo das tendências ao paroxismo. Como mero jogo de mudanças pela mudança, submetida às exigências cegas da novidade, a moda chega a um ponto em que o novo perde seu poder informativo e se torna redundante. Qual pode ser a estratégia para sustentar a febre das mudanças? Conforme nos diz Baudrillard (1996, p. 111), quando a “determinação interna aos signos da moda” se perde, esses signos “ficam livres para se comutar, se permutar de maneira ilimitada". É por isso que estilos de um passado remoto e recente começam a aparecer, desaparecer, reaparecer em traduções cíclicas e contínuas. Alusões, citações, cópias e clichês de estilos passados tornam-se recursos indispensáveis para a acelerada mutação na produção da moda. É ainda Baudrillard (ibid., p. 112) quem nos diz que, "sob o signo da mercadoria, o tempo se acumula como dinheiro – sob o signo da moda, o tempo é interrompido e descontinuado em ciclos emaranhados".

De fato, a moda é um excelente laboratório para a compreensão do estado de coisas presente no que concerne ao estilo. O que testemunhamos hoje é a saturação de estilos, uma inflação e coexistência das mais variadas tendências multitemporais e multiespaciais. Disso resulta a morte do estilo como algo capaz de configurar o perfil de um dado período histórico. Contudo, enquanto as culturas pós-modernas colocam em questão a ideia dos estilos como padrões historicamente reconhecíveis, as culturas pós-humanas, conforme será explicitado a seguir, problematizam a ideia do estilo como marcas deixadas nos processos de signos por um talento individual.

III – Marcas de autoria são ainda possíveis na cultura pós-humana?


Antes de tudo, é necessário esclarecer o sentido em que tomo a expressão "pós-humano". Essa expressão está sujeita a muitos mal-entendidos, especialmente para aqueles que apressadamente a tomam ao pé da letra, sem se darem ao trabalho de pesquisar e comparar seus sentidos possíveis.

É preciso notar que o conceito de pós-humano, juntamente com outros similares, surgiu concomitantemente à emergência da revolução digital e da cibercultura. Trata-se de um conceito que tem buscado enfrentar os dilemas que as interfaces entre seres humanos e máquinas inteligentes estão trazendo para a fisiologia, ontologia e epistemologia do humano. Segundo Featherstone e Burrows (1996, p. 2), não são apenas as reconstituições da vida social que estão em questão, mas também o impacto das atuais transformações tecnológicas sobre a psique e o corpo dos seres humanos. Trata-se, portanto, de um verdadeiro choque do futuro eclodido pelos campos recentes da pesquisa e do desenvolvimento nas ciências e tecnologias biológicas, da informação e dos materiais, como a robótica, as nanotecnologias, a vida artificial, as redes neurais, a realidade virtual e as redes planetárias de intercâmbio de informações. Em Posthuman condition, do artista inglês Robert Pepperell (1995), o pós-humano se refere à convergência geral dos organismos com a tecnologia a ponto de se tornarem indistinguíveis, o que provoca profundas mudanças na nossa visão acerca daquilo que constitui o humano. Para ele, as tecnologias pós-humanas são: realidade virtual, comunicação global, prostética e nanotecnologia, redes neurais, algoritmos genéticos, manipulação genética e vida artificial.

Junto com Pepperell, muitos autores, aos quais me alio, são hoje unânimes na constatação de que a remodelagem do corpo humano e a reconfiguração da consciência humana não podem mais ser negadas, sob pena de cairmos em um conservadorismo disfarçado sob o álibi de uma crítica queixosa da perda de uma essência humana imutável, uma crítica que, aliás, se esquece de que transformando a natureza o homem transforma a sua própria natureza.

Há expressões similares a "pós-humano" que vêm sendo usadas com alguma frequência, tal como "pós-biológico”. Enquanto esta última refere-se mais explicitamente à hibridização entre o organismo e as máquinas, o termo "pós-humano" inclui essa hibridização, mas vai além dela, pois envolve inquietações e indagações filosóficas e antropológicas acerca do destino humano nestes tempos de mutação. Há aqueles que, de modo muito simplista, falam em nome do transhumano, querendo significar com isso a transcendência do humano de seu corpo mortal, frágil, vulnerável e obsoleto, em prol de uma nova natureza artificialmente produzida, não constrangida pelos trágicos limites da mortalidade.

Apesar dos perigos de ser confundida com essas formas de misticismo simplistas, reducionistas e ilusionistas, continuo defendendo o uso da expressão "pós-humano" como sendo estrategicamente forte de modo a nos levar a enfrentar a necessidade presente e agudamente desafiante de repensarmos a condição humana na pluralidade de suas facetas, na medida em que são agora afetadas em intensidade pelas tecnologias, a saber, a faceta molecular, a corpórea, a psíquica, a social, a antropológica e a filosófica.

Entre as inumeráveis questões emergentes no contexto da cultura pós-humana e da simbiose entre humanos e dispositivos maquínicos, encontra-se o problema da autoria, um problema que se liga diretamente à questão do estilo como marcas imprimidas na linguagem por um talento individual. O que se coloca em discussão é o giro radical que se opera nos processos de produção e criação, quando mediados pelo computador e suas extensões. As tecnologias que nos circundam, em nossos lares, nos terminais de banco, nos dispositivos móveis, não são simplesmente tecnologias rudes, mecânicas, cuja imagem, risível e, ao mesmo tempo, assustadora, Chaplin eternizou em Tempos Modernos. Ao contrário dessas tecnologias baseadas na repetição mecânica, a digitalização trouxe para nós tecnologias computacionais, quer dizer, dispositivos inteligentes. As novas formas de escritura da e-poesia e net-poesia, a multiplicidade de tendências na net arte, ciber arte, e bio arte não apenas implicam o diálogo em profundidade com a inteligência e vida artificiais, mas também a necessidade de se desenvolver trabalhos cooperativos e colaborativos que ligam artistas, cientistas e técnicos em um processo comum.

Já no cinema, o trabalho em equipe se coloca como uma necessidade inalienável do processo de produção. O diretor reparte o processo com uma série de outros criadores, tais como o roteirista, o iluminador, o fotógrafo etc. Entretanto, os participantes nesse tipo de processo colaborativo pertencem a uma mesma esfera. São todos, de uma forma ou de outra, artistas.

Antes da revolução digital, também já existia uma repercussão, em maior ou menor intensidade, das descobertas científicas sobre as artes. Basta lembrar a influência sobre a pintura impressionista das pesquisas científicas relativas ao funcionamento da visão humana. De resto, foram também essas pesquisas que levaram à finalização da invenção da câmera fotográfica e do próprio cinema.

O que é diferente no mundo digital, entretanto, é que a própria produção artística não pode dispensar sua sincronização com o trabalho de cientistas e técnicos. Trata-se de uma criação conjugada. Quando o artista incorpora inteligência e vida artificiais e algoritmos complexos em seu trabalho, a criação só pode se processar no diálogo, na heterocrítica, no hibridismo de competências.

Além disso, outro fator que coloca profundamente em questão a ideia de autoria encontra-se no sobejamente discutido conceito de interatividade. Tecnologias da inteligência são sine qua non tecnologias interativas. Por isso mesmo, elas nublam as fronteiras entre produtores e consumidores, emissores e receptores. Nas formas literárias, no teatro, no cinema, na televisão e no vídeo, há sempre uma linha divisória relativamente clara entre produtores e receptores, o que não acontece mais nas novas formas de comunicação e de criação interativas, formas que nos games atingem níveis paroxísticos. Como um meio bidirecional, dinâmico, que só pode ir se realizando em ato, por meio do agenciamento do usuário, o game implode radicalmente os tradicionais papéis de quem produz e de quem recebe.

Mesmo nas redes, em seu atual estado da arte, a interatividade permite acessar informações à distância em caminhos não lineares de hipertextos e ambientes hipermídia; enviar mensagens que ficam disponíveis sem valores hierárquicos; realizar ações colaborativas na rede; experimentar a telepresença; visualizar espaços distantes; agir em espaços remotos; coexistir em espaços reais e virtuais; circular em ambientes inteligentes através de sistemas de agentes; interagir em ambientes que simulam vida e se auto-organizam; pertencer a comunidades virtuais com interação e imergir em ambientes virtuais de múltiplos usuários (Domingues, 2002, p. 111-112).

Por isso mesmo, como diz Plaza (2001, p. 36), “a interatividade não é somente uma comodidade técnica e funcional; ela implica física, psicológica e sensivelmente o espectador em uma prática de transformação”. O princípio que rege a interatividade nas redes, seja em equipamentos fixos ou móveis, é o da mutabilidade, da efemeridade, do vir-a-ser em processos que demandam a reciprocidade, a colaboração, a partilha. A interatividade ciberespacial não seria possível sem a competência semiótica do usuário para lidar com as interfaces computacionais. Essa competência semiótica implica vigilância, receptividade, escolha, colaboração, controle, desvios, reenquadramentos em estados de imprevisibilidade, de acasos, desordens, adaptabilidade que são, entre outras, as condições exigidas para quem prevê um sistema interativo e para quem o experimenta.

Cada vez mais as tecnologias interativas crescem em complexidade. Conforme Domingues (ibid., p. 84) nos informa, alguns autores criaram a denominação de “segunda interatividade” para as situações em que as máquinas são capazes de oferecer respostas similares ao comportamento dos seres vivos, para situações geradas no interior de sistemas guiados por modelos perceptivos oriundos das ciências cognitivas que simulam o funcionamento da mente e por princípios de inteligência artificial e vida artificial. São simulações que operam de forma complexa, em ambientes que evoluem em suas respostas, como, por exemplo, os dotados de redes neurais e suas camadas ou perceptrons que funcionam como conexões de sinapses artificiais e que podem ser treinadas para a aprendizagem, dando respostas para além da mera comunicação em modelos clássicos. [...] Em pesquisas mais recentes, surgem, assim, sistemas artificiais dotados de fitness, com plena capacidade de gerar e lidar com imprevisibilidades, resultando em processos de solução de problemas por trocas aleatórias, seleção de dados, cruzamentos de informação, auto-regulagem do sistema, entre outras funções (ibid.).

Conclusão: enquanto a cultura pós-moderna e global nos levou ao fim do estilo concebido como padrão capaz de perfilar e permitir o reconhecimento de um período histórico, o que a cultura pós-humana está agora colocando sob interrogação é o estatuto do talento individual como fonte para uma certa noção de estilo. Enfim, se todos os processos de criação na era pós-humana, além de serem coletivos, cooperativos e dialógicos são também realizados em simbiose com a inteligência e vida artificiais, então o estilo, tradicionalmente concebido como marcas qualitativas de um talento individual, está destinado a desaparecer? Deixo a resposta para nossa meditação.


Referências


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