III – Marcas de autoria são ainda possíveis na cultura pós-humana?
Antes de tudo, é necessário esclarecer o sentido em que tomo a expressão "pós-humano". Essa expressão está sujeita a muitos mal-entendidos, especialmente para aqueles que apressadamente a tomam ao pé da letra, sem se darem ao trabalho de pesquisar e comparar seus sentidos possíveis.
É preciso notar que o conceito de pós-humano, juntamente com outros similares, surgiu concomitantemente à emergência da revolução digital e da cibercultura. Trata-se de um conceito que tem buscado enfrentar os dilemas que as interfaces entre seres humanos e máquinas inteligentes estão trazendo para a fisiologia, ontologia e epistemologia do humano. Segundo Featherstone e Burrows (1996, p. 2), não são apenas as reconstituições da vida social que estão em questão, mas também o impacto das atuais transformações tecnológicas sobre a psique e o corpo dos seres humanos. Trata-se, portanto, de um verdadeiro choque do futuro eclodido pelos campos recentes da pesquisa e do desenvolvimento nas ciências e tecnologias biológicas, da informação e dos materiais, como a robótica, as nanotecnologias, a vida artificial, as redes neurais, a realidade virtual e as redes planetárias de intercâmbio de informações. Em Posthuman condition, do artista inglês Robert Pepperell (1995), o pós-humano se refere à convergência geral dos organismos com a tecnologia a ponto de se tornarem indistinguíveis, o que provoca profundas mudanças na nossa visão acerca daquilo que constitui o humano. Para ele, as tecnologias pós-humanas são: realidade virtual, comunicação global, prostética e nanotecnologia, redes neurais, algoritmos genéticos, manipulação genética e vida artificial.
Junto com Pepperell, muitos autores, aos quais me alio, são hoje unânimes na constatação de que a remodelagem do corpo humano e a reconfiguração da consciência humana não podem mais ser negadas, sob pena de cairmos em um conservadorismo disfarçado sob o álibi de uma crítica queixosa da perda de uma essência humana imutável, uma crítica que, aliás, se esquece de que transformando a natureza o homem transforma a sua própria natureza.
Há expressões similares a "pós-humano" que vêm sendo usadas com alguma frequência, tal como "pós-biológico”. Enquanto esta última refere-se mais explicitamente à hibridização entre o organismo e as máquinas, o termo "pós-humano" inclui essa hibridização, mas vai além dela, pois envolve inquietações e indagações filosóficas e antropológicas acerca do destino humano nestes tempos de mutação. Há aqueles que, de modo muito simplista, falam em nome do transhumano, querendo significar com isso a transcendência do humano de seu corpo mortal, frágil, vulnerável e obsoleto, em prol de uma nova natureza artificialmente produzida, não constrangida pelos trágicos limites da mortalidade.
Apesar dos perigos de ser confundida com essas formas de misticismo simplistas, reducionistas e ilusionistas, continuo defendendo o uso da expressão "pós-humano" como sendo estrategicamente forte de modo a nos levar a enfrentar a necessidade presente e agudamente desafiante de repensarmos a condição humana na pluralidade de suas facetas, na medida em que são agora afetadas em intensidade pelas tecnologias, a saber, a faceta molecular, a corpórea, a psíquica, a social, a antropológica e a filosófica.
Entre as inumeráveis questões emergentes no contexto da cultura pós-humana e da simbiose entre humanos e dispositivos maquínicos, encontra-se o problema da autoria, um problema que se liga diretamente à questão do estilo como marcas imprimidas na linguagem por um talento individual. O que se coloca em discussão é o giro radical que se opera nos processos de produção e criação, quando mediados pelo computador e suas extensões. As tecnologias que nos circundam, em nossos lares, nos terminais de banco, nos dispositivos móveis, não são simplesmente tecnologias rudes, mecânicas, cuja imagem, risível e, ao mesmo tempo, assustadora, Chaplin eternizou em Tempos Modernos. Ao contrário dessas tecnologias baseadas na repetição mecânica, a digitalização trouxe para nós tecnologias computacionais, quer dizer, dispositivos inteligentes. As novas formas de escritura da e-poesia e net-poesia, a multiplicidade de tendências na net arte, ciber arte, e bio arte não apenas implicam o diálogo em profundidade com a inteligência e vida artificiais, mas também a necessidade de se desenvolver trabalhos cooperativos e colaborativos que ligam artistas, cientistas e técnicos em um processo comum.
Já no cinema, o trabalho em equipe se coloca como uma necessidade inalienável do processo de produção. O diretor reparte o processo com uma série de outros criadores, tais como o roteirista, o iluminador, o fotógrafo etc. Entretanto, os participantes nesse tipo de processo colaborativo pertencem a uma mesma esfera. São todos, de uma forma ou de outra, artistas.
Antes da revolução digital, também já existia uma repercussão, em maior ou menor intensidade, das descobertas científicas sobre as artes. Basta lembrar a influência sobre a pintura impressionista das pesquisas científicas relativas ao funcionamento da visão humana. De resto, foram também essas pesquisas que levaram à finalização da invenção da câmera fotográfica e do próprio cinema.
O que é diferente no mundo digital, entretanto, é que a própria produção artística não pode dispensar sua sincronização com o trabalho de cientistas e técnicos. Trata-se de uma criação conjugada. Quando o artista incorpora inteligência e vida artificiais e algoritmos complexos em seu trabalho, a criação só pode se processar no diálogo, na heterocrítica, no hibridismo de competências.
Além disso, outro fator que coloca profundamente em questão a ideia de autoria encontra-se no sobejamente discutido conceito de interatividade. Tecnologias da inteligência são sine qua non tecnologias interativas. Por isso mesmo, elas nublam as fronteiras entre produtores e consumidores, emissores e receptores. Nas formas literárias, no teatro, no cinema, na televisão e no vídeo, há sempre uma linha divisória relativamente clara entre produtores e receptores, o que não acontece mais nas novas formas de comunicação e de criação interativas, formas que nos games atingem níveis paroxísticos. Como um meio bidirecional, dinâmico, que só pode ir se realizando em ato, por meio do agenciamento do usuário, o game implode radicalmente os tradicionais papéis de quem produz e de quem recebe.
Mesmo nas redes, em seu atual estado da arte, a interatividade permite acessar informações à distância em caminhos não lineares de hipertextos e ambientes hipermídia; enviar mensagens que ficam disponíveis sem valores hierárquicos; realizar ações colaborativas na rede; experimentar a telepresença; visualizar espaços distantes; agir em espaços remotos; coexistir em espaços reais e virtuais; circular em ambientes inteligentes através de sistemas de agentes; interagir em ambientes que simulam vida e se auto-organizam; pertencer a comunidades virtuais com interação e imergir em ambientes virtuais de múltiplos usuários (Domingues, 2002, p. 111-112).
Por isso mesmo, como diz Plaza (2001, p. 36), “a interatividade não é somente uma comodidade técnica e funcional; ela implica física, psicológica e sensivelmente o espectador em uma prática de transformação”. O princípio que rege a interatividade nas redes, seja em equipamentos fixos ou móveis, é o da mutabilidade, da efemeridade, do vir-a-ser em processos que demandam a reciprocidade, a colaboração, a partilha. A interatividade ciberespacial não seria possível sem a competência semiótica do usuário para lidar com as interfaces computacionais. Essa competência semiótica implica vigilância, receptividade, escolha, colaboração, controle, desvios, reenquadramentos em estados de imprevisibilidade, de acasos, desordens, adaptabilidade que são, entre outras, as condições exigidas para quem prevê um sistema interativo e para quem o experimenta.
Cada vez mais as tecnologias interativas crescem em complexidade. Conforme Domingues (ibid., p. 84) nos informa, alguns autores criaram a denominação de “segunda interatividade” para as situações em que as máquinas são capazes de oferecer respostas similares ao comportamento dos seres vivos, para situações geradas no interior de sistemas guiados por modelos perceptivos oriundos das ciências cognitivas que simulam o funcionamento da mente e por princípios de inteligência artificial e vida artificial. São simulações que operam de forma complexa, em ambientes que evoluem em suas respostas, como, por exemplo, os dotados de redes neurais e suas camadas ou perceptrons que funcionam como conexões de sinapses artificiais e que podem ser treinadas para a aprendizagem, dando respostas para além da mera comunicação em modelos clássicos. [...] Em pesquisas mais recentes, surgem, assim, sistemas artificiais dotados de fitness, com plena capacidade de gerar e lidar com imprevisibilidades, resultando em processos de solução de problemas por trocas aleatórias, seleção de dados, cruzamentos de informação, auto-regulagem do sistema, entre outras funções (ibid.).
Conclusão: enquanto a cultura pós-moderna e global nos levou ao fim do estilo concebido como padrão capaz de perfilar e permitir o reconhecimento de um período histórico, o que a cultura pós-humana está agora colocando sob interrogação é o estatuto do talento individual como fonte para uma certa noção de estilo. Enfim, se todos os processos de criação na era pós-humana, além de serem coletivos, cooperativos e dialógicos são também realizados em simbiose com a inteligência e vida artificiais, então o estilo, tradicionalmente concebido como marcas qualitativas de um talento individual, está destinado a desaparecer? Deixo a resposta para nossa meditação.
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