OS ESPAÇOS PERCEPTIVOS NOS QUAIS INTERAGIMOS
 

Yara Rondon Guasque Araujo

 

Os conceitos de realidade virtual – como quando o observador se sente em um mundo ficcional gerado artificialmente – e de telepresença – como quando o observador se sente em um espaço real gerado pelo ambiente natural – expõem a fragilidade das definições de real e de virtual (AraUjo, 2005).

A discussão teórica sobre presença, como mostram Giuseppe Mantovani e Giuseppe Riva (2001), bifurca-se entre os aderentes das correntes da hard computing, oriunda da Engenharia, e da soft computing, dos estudos sociais. Ao ver de Biocca (2001) isso resulta em abordagens distintas de espaço, oriundas dos dois grupos: aqueles para os quais existe uma divisão clara entre virtual e real, entre mundo interno perceptivo e mundo externo objetivo, e aqueles para os quais o espaço é relacional e coabitado por mente e meio ambiente.

Já as ciências biológicas, em vez de abordarem a questão do espaço, centram-se na maneira como nós, humanos, construímos o mundo que habitamos. Na exposição de Maturana e de Varela (2005), construímos o mundo através de nossas interações interpessoais e sobretudo através da linguagem. Entretanto essa construção não se dá por meio de representações abstratas, mas pelo modo como experienciamos o mundo através de nossas ações concretas, corporificadas, nas palavras de Varela (2003). Para esta abordagem, é nulo falar de um mundo externo em oposição a um mundo interno, postura adotada por outros cientistas de diferentes áreas, como veremos adiante.

A separação entre mundo externo e mundo interno sustentada por Sheridan (2001), em Ecletic ontology of presence, nega que a realidade é uma construção e que o espaço é um espaço relacional entre virtual e real, coabitado tanto pela mente quanto pelo meio ambiente.

A postura de uma imprecisa delimitação entre os mundos objetivo dos objetos e subjetivo das experiências perceptivas – que une os objetos externos à maneira como a mente funciona e percebe esses mesmos objetos – obscurece a defesa de Sheridan de uma teoria sobre a mente encorpada, embodied mind. Sheridan, defensor de uma teoria dualística que diferencia nitidamente os espaços real e virtual, considera a imprecisão dessa divisão um beco sem saída para o prosseguimento de suas pesquisas.

Já outros autores como Mantovani e Riva (2001) consideram o espaço real (físico) e o virtual como espaços relacionais e não vêem fundamentação concreta na visão dualística de Sheridan, como demonstram.

The dualistic view has no real foundation because the whole human experience of being in an environment is bioculturally mediated so that there is no “outside” [things, objects] as independent from and opposed to an ‘inside’ [mind, knowledge, perception, and so on].*
A visão dualística é fundamentada apenas na linguagem e na maneira como argumentamos sobre o “lado de fora” e o “lado de dentro”, como veremos em Maturana e Varela (2005), pois, do ponto de vista do cérebro, ela inexiste. Nossa experiência do real é sempre intermediada pela mente – que atua como interface – e contagiada pela percepção fenomenológica. A mente não tem acesso direto ao mundo, nem aos objetos através da intuição sensata ou intelectual, independentemente da própria estrutura que condiciona a possibilidade da experiência; e a experiência do real dos objetos reflete antes a estrutura cognitiva da mente do que o objeto em observação, como entende também Rita Lauria (2003).

Este texto não se propõe a validar ou negar a teoria dualística, mas extrair as melhores contribuições sobre a fronteira entre o concreto e o virtual, como a abordagem de Maturana e Varela. Maturana nos fala de uma “objetividade entre parêntese” que grosseiramente poderíamos entender como alinhada a uma postura de relativização da realidade, a exemplo da relativização da objetividade do mundo exposta por Einstein em sua teoria da relatividade. “Objetivo mesmo era apenas o mundo absoluto do espaço-tempo de Minkowskis que jaz por detrás. Toda realidade era apenas um corte – uma projeção ou uma reaparição da realidade” (Rössler, 1996, p. 23).

Entretanto, Maturana e Varela (2005, p. 148) questionam os extremos desta visão dualística, o representacional (objetivista) e o solipsista (idealista), propondo uma linha mediana metaforicamente representada como a aprendizagem de andar no fio da navalha.
Com efeito, se o sistema nervoso não funciona – e não pode funcionar – com representações do mundo que nos cerca, como então surgiu a extraordinária eficácia operacional do homem e dos animais, e sua imensa capacidade de aprendizagem e manipulação do mundo? Se negarmos a objetividade de um mundo cognoscível, não cairemos no caos da total arbitrariedade, pois assim tudo se torna possível? É como andar sobre o fio da navalha. De um lado há uma armadilha: a impossibilidade de compreender o fenômeno cognitivo se assumimos um mundo de objetos que nos informam, já que não há um mecanismo que de fato permite tal "informação". De outra parte, nova armadilha: o caos e a arbitrariedade da ausência do mundo objetivo, donde se conclui que tudo parece ser possível. Temos de aprender a andar sobre uma linha mediana, sobre o próprio fio da navalha.
O intuito deste texto é a procura, entre vários autores, da reflexão desenvolvida sob esta linha mediana, para pensarmos melhor como se dá a percepção-cognição nos ambientes imersivos, que estabelecem uma expansão da percepção do observador, e, ao mesmo tempo, questionarmos a propriedade e o design dos espaços online como espaços de interações interpessoais. Nos imersivos, é sabido que o observador se transforma em observador interno – aquele que experiência a ação como primeira pessoa – e continua sendo o observador externo – aquele que observa do lado de fora da ação um outro experienciando, ainda que possa ser ele mesmo.

É igualmente conhecido que a realidade virtual simula um continuum entre os espaços interno e externo, em vez de propor saltos de posicionamentos fixos, que resultam em imagens fixas, como a fotografia o faria – um continuum baseado na propriocepção, na percepção sensório-motora de uma pessoa em movimento. Introduzindo a percepção sensório-motora do observador agora imerso num ambiente que faz parte de sua estrutura comunicativa e de ação, a realidade virtual dilui o referencial espacial do local onde o observador se encontra fisicamente, alterando subsequentemente sua noção temporal, como exemplifica Rita Lauria (2003) com a CAVE Brain Desconstruction, da fotógrafa Rita Addison, que mostra a capacidade deste formato de transcender as propriedades de localização e de continuidade. No exemplo de Rita Addison, a característica integradora da arte uniu sua experiência dual de mundo interno e externo para mostrar a aparente capacidade da Virtual Reality (VR) e transcender propriedades como localidade, continuidade e causalidade, através da criação de um espaço virtual multidimensional e dinâmico, no qual todos os elementos funcionam cooperativamente para criar sentido além de suas extensões separadas no plano local.

Essa naturalidade da navegação propiciada tem como base a propriocepção, como explica a teórica literária N. Katherine Hayles (1999), em The Condition of Virtuality:
Propriocepção é o sentido que nos fala onde estão as fronteiras do nosso corpo. Associado aos mecanismos do ouvido interno e às terminações nervosas internas, ele nos faz sentir que habitamos nosso corpo a partir do lado de dentro. Coerência proprioceptiva, um termo usado pelos fenomenólogos, refere-se a como essas fronteiras são formadas através de uma combinação de circuitos de respostas fisiológicas e uso habitual.
O fato de termos a realidade virtual como parte de nossa estrutura comunicativa e de ação é uma situação delicada, pois nos obriga a especulações mais sutis sobre a correlação e a consciência de sermos iludidos sensorialmente e agirmos no mundo físico, apesar das diferenças de resistência dos meios virtual e concreto. Mas é impróprio afirmarmos que, nessas situações, nosso cérebro ajusta a percepção sensório-motora do movimento como que computando e processando as informações externas que são modificadas constantemente a cada movimento corporal, informações que funcionariam como agentes perturbadores externos. Na opinião de Maturana e Varela, o cérebro vive em clausura e não tem condição de perceber o exterior. O que há, segundo os autores, é um “acoplamento das superfícies sensoriais e motoras, mediante uma rede de neurônios cuja configuração pode ser muito variada” (MATURANA; VARELA, 2005, p. 177). Estas informações como perturbações externas não são, portanto, determinantes da atividade neuronal e só são capazes de modular o constante equilíbrio interno (MATURANA; VARELA, 2005, p. 180).

Na abordagem representacionista do fenômeno da percepção visual, a imagem retiniana teria na sequência um correspondente no interior do sistema nervoso. Mas o que os autores afirmam é que a estrutura da retina e a do córtex cerebral estão numa relação de afetação mútua e não sequencial (MATURANA; VARELA, 2005, p. 181).

Para Varela (2003, p. 85), é a experiência no mundo concreto que possibilita e restringe a compreensão de inúmeros domínios cognitivos. É o acoplamento sensório-motor que atua nas estruturas corporificadas e que nos permite agir em um micromundo já apresentado e não em gestação.
Há indícios de que esse acoplamento sensório-motor esteja relacionado com outros tipos de desempenho cognitivo tipicamente humanos: em outras palavras, os níveis cognitivos realmente “mais altos” surgem a partir do evento de sentir e agir de nível “baixo”, possibilitando que a ação seja direcionada perceptivamente. (VARELA, 2003, p. 84).
Estes processos são auto-organizáveis e as estruturas cognitivas surgem a partir dos padrões da atividade sensório-motora. Por essas questões, o nível de interação sensório-motora na percepção é mais importante do que as apreensões abstratas. Para Varela, a cognição é caracterizada antes pela ação corporificada do que pelas representações abstratas, e as estruturas cognitivas emergem das ações direcionadas perceptivamente.

Algumas abordagens de espaço geométrico e de presença de diferentes autores elucidaram a compreensão do observador como participante do mundo perceptível “externo”, a exemplo das abordagens sobre o espaço, que se desenvolveu do sistema de coordenadas cartesiano para o sistema riemanniano, que, por sua vez, inclui a quarta dimensão do tempo e o observador como aspecto integral do campo espaço-temporal (Blatt, 1984, p. 91-92). Por este conceito a realidade é reconhecida como uma função do movimento e da posição relativa do observador.

Embora nossa percepção do mundo seja deformada por nossa particular referência espaço-temporal, dada nossa natureza biológica e cultural, e porque observamos o mundo imersos nele, podemos reconhecer as distorções impostas por nossa capacidade perceptiva.

Para outro autor, Franz Zoder (2001), é central a questão da relatividade da interface do observador. Para ele, a interface, como um maiô, adere ao sujeito que a veste. O observador migra de pontos diferenciados, de uma endorrealidade a uma exorrealidade. Assim, a realidade resulta das relações que o sujeito estabelece com seu entorno. Zoder usa o esquema da Programação Neurolinguística desenvolvida por DeLozier e Grinder, por achá-lo útil para elucidar as diferentes perspectivas da experiência perceptiva. Cada mudança do ponto de vista implica na redefinição de um novo observador e de um novo ambiente que o circunda. O modelo demonstra como a experiência subjetiva do observador é influenciada pelas diferentes perspectivas e pontos de vista.

O esquema é constituído por três perspectivas: o primeiro ponto de vista é o da primeira pessoa da ação, que representa a endoperspectiva; o segundo é o ponto de vista da terceira pessoa fora do campo da ação, que representa a exoperspectiva quando a pessoa experiência a cena de um ponto de vista desassociado da primeira pessoa; e o terceiro é o ponto de vista de um observador que assiste indiferentemente às perspectivas do primeiro e do segundo pontos de vista alternando entre estes, podendo dessa maneira diferenciá-los. Esse terceiro ponto de vista é denominado por Zoder como metaperspectiva. Esse esquema nos permite acompanhar o observador durante a experiência do processo de intersubjetivação. Como Zoder afirma, a cada mudança de posição novas definições de ambiente e de observador são ativadas.

Para Zoder esse processo no qual o observador se torna observador de si mesmo, através de pontos de vista diferenciados durante a observação, é semelhante ao que acontece na meditação. Podemos entender como a interface age na diferenciação do processo de pensamento e do objeto deste. Zoder diferencia o processo de pensamento do objeto do pensamento usando a metáfora hindu: o processo de pensamento seria como a madeira no fogo, que alimenta o fogo, primeiramente, e depois se transforma no próprio fogo. Em vez de se centrar em um objeto fixo, o processo de pensamento com suas descobertas gera um observador no fluxo da observação durante o desencadeamento do processo.

Para Maturana, o observar é logo depois seguido da distinção desse observar que dá surgimento ao observador; e a observação do observador, em seu autoapercebimento, dá origem à autoconsciência.

Até certo ponto a distinção entre os mundos gerados internamente e externamente, que John e Eva Waterworth (Waterworth, 2001) fazem em The Meaning of Presence, é conveniente. É positiva por discriminar, entre as mídias, as que oferecem uma experiência de presença interiorizada e as que propiciam uma experiência exteriorizada. Segundo J. e E. Waterworth a diferença entre os mundos gerados internamente e os gerados externamente pode ser percebida na comparação dos mundos gerados ao lermos uma novela ou ao atuarmos num ambiente de realidade virtual. O mundo da novela é abstrato e só é completado conceitualmente. Ao contrário, o mundo da realidade virtual é o mesmo para todos os que o visitam. O mundo imaginado da ficção, como mundo interiorizado, não pode ser compartilhado da mesma forma que o mundo exteriorizado, que podemos vivenciar na interação com outros indivíduos. Nessas duas situações – experiências de presença interiorizada e exteriorizada – distinguimos mais as limitações e possibilidades de ação do corpo no espaço circundante do que as diferenças entre os mundos gerados internamente e externamente. Queremos com essas duas situações destacar a cognição propiciada por um meio representacional abstrato e por um meio que facilita a ação corporificada, e aí reside a maior contribuição da distinção feita por J. e E. Waterworth. Todavia, para Maturana e Varela a interação com outros seres vivos presenciais no espaço concreto é insubstituível, mesmo que a experiência de presença como exteriorizada oferecida por algumas mídias propicie a cognição através da ação corporificada, ao invés da representação abstrata.

A primeira tendência diante das observações de Zoder e de J. e E. Waterworth seria dividirmos as experiências em duas esferas: a endoesfera e a exoesfera. Mas se Otto E. Rössler, junto com Artur P. Schmidt (2000), parece falar em mundos distintos em Medium des Wissens das Menschenrecht auf Information, “Endo-Welten” e “Exo-Welten”, que caracterizam observadores diferenciados, o primeiro cunhado pela subjetividade e imersividade, e o segundo pela objetividade, a proposição de Rössler do desenvolvimento de uma teoria da “microrrelatividade” associada às sutis e microscópicas mudanças do posicionamento do observador fragiliza essa distinção. Como consequência, essa teoria da microrelatividade forçaria a verificação experimental hipotética de que o mundo se apresenta como um “lugar de ruptura” aderido à pele e distorcido constantemente pelo mundo exógeno individual ou, ainda, a verificação da realidade como interface, exemplificada na relação que temos com nosso entorno, como na frase de Lao-Tse de que “o peixe não reconhece a água” (Rössler; Schmidt, 2000).

Mais do que o esquema de Zoder, é a proposição do desenvolvimento de uma microrrelatividade de Rössler, que tem afinidade com a concepção de Varela dos micromundos que criamos a todo momento e nos quais interagimos. Também o conceito de Rössler de realidade como interface tem seu correspondente em Maturana e Varela na ideia de um mundo consensual criado através da linguagem. O mundo não é o lugar no qual acreditamos estar, mas o “Schnittstelle”, o “lugar de ruptura” (Rössler, 1996) que pode ser verificado através das condições de compartilhamento consensuais que não seguem as leis naturais. Essas particularidades do mundo o fazem ser um objeto em transição, segundo Rössler, ou como Merleau-Ponty (1990) nos diz, citando Husserl, uma “síntese de transição”.

Maturana adota os termos “objetividade entre parêntese” ou “realidade entre parêntese” para destacar que, do ponto de vista neurológico, é impossível identificar uma realidade ou objetividade externa que não seja contaminada pela percepção do observador. Para ele, o observador que adota a postura de uma "objetividade entre parêntese" é consciente de que suas emoções determinam o domínio de racionalidade no qual ele gera seus argumentos (Maturana, 2002, p. 267). Para o autor, aceitar o caminho explicativo de uma "objetividade sem parêntese" ou de uma "realidade sem parêntese" é negar qualquer reflexão sobre nossa própria origem como observadores (ibid., p. 264).

No caminho explicativo da objetividade entre parêntese, o observador aceita o fato de, como ser humano, ser um sistema vivo cujas habilidades cognitivas, como fenômenos biológicos, são afetadas de acordo com sua condição biológica (Maturana, 2002, p. 249).

Diante da exposição de Maturana de como nossa condição biológica afeta a cognição, é um exercício pensarmos os espaços de interação online – por exemplo, os que possibilitam videostreaming (em tempo real) e oferecem salas multiusuário e comunicação síncrona − como sistemas sociais.

Este é um ponto importante a ser levantado, já que verificamos tantas patologias sociais nestes espaços ditos “sociais” do ciberespaço, pois relacionamos as técnicas de comunicação remota da sociedade informacional a ferramentas que fortalecem as relações sociais, argumentação ressaltada na teoria da telepresença social.

Analisando a comunicação e os fenômenos sociais, Maturana e Varela (2005, p. 214) mostram como certos acoplamentos satisfazem mutuamente as ontogenias individuais dos participantes na rede de interações recíprocas e acabam por formar unidades de terceira ordem. Para eles, “toda vez que há um fenômeno social há um acoplamento estrutural entre indivíduos” que podemos descrever “como uma conduta de coordenação recíproca”. Um dos exemplos citados pelos autores é a produção do cantar entre as aves africanas que vivem na selva sem contato visual. O estabelecimento do casal se dá através do canto, que as análises asseguram tratar-se de dueto em que cada membro constrói uma frase que é continuada pelo outro.

Entretanto, somente se a observação e a cognição forem explicadas como fenômenos biológicos, gerados pela operação do observador como ser humano vivo, poderemos compreender adequadamente os fenômenos sociais e não-sociais da vida humana (Maturana, 2002, p. 244). Porque para Maturana fenômenos sociais necessariamente são fenômenos coligados à nossa capacidade de se emocionar. Para ele, os sistemas de trabalho cooperativos não são sistemas sociais. São sistemas de compartilhamento de responsabilidades e de divisão de tarefas para o alcance de determinada meta.

Sistemas sociais são, para o autor, uma existência em co-deriva de seres vivos que, através de suas condutas, criam redes de interações conservando suas organizações e adaptações individuais. A auto-organização a que Maturana (2002, p. 198) se refere é a organização autopoiética, que é nossa condição como seres vivos (autopoiéticos). Esta condição pode ser explicada como a contínua produção de nós mesmos e renovação de nosso arredor, colocando e retirando do meio componentes que acabam por definir nossa autoprodução (MATURANA, 2002, p. 196-197). O ser humano se caracterizaria pelo seu linguajar e por sua capacidade de se emocionar. Em seu linguajar com outros humanos, seria determinante a consensualidade nas coordenações de ações. Basicamente, o humano se distinguiria por sua aceitação mútua, por sua sensualidade, por sua confiança e pelo seu compartilhamento, diferentemente dos animais como os chimpanzés, que vivem centrados em um domínio no qual a hierarquia assegura privilégios de alimento, sexo e, poderíamos dizer, informação. Estes são os denominados animais políticos. O espaço psíquico humano não é um espaço político propriamente, segundo Maturana, apesar de termos, nos últimos séculos, nos tornado seres culturalmente políticos. E a consciência não é uma característica do cérebro (MATURANA, 2002, p. 239).

Somos dependentes dos acoplamentos que criamos através da linguagem. “Por sermos humanos, somos inseparáveis da trama de acoplamentos estruturais tecida por nossa permanente ‘trofolaxe linguística’” (MATURANA; VARELA, 2005, p. 207), que lembra o contínuo intercâmbio químico entre as formigas que resulta na distribuição de certas substâncias, entre estas certos hormônios que atuam na diferenciação e especificação dos papéis sociais. O mundo surge na linguagem como resultado de nossas interações, que são coordenações consensuais de ação. “Somos na linguagem” (MATURANA; VARELA, 2005, p. 257).

O mental e a autoconsciência, que é o que temos de mais humano, surgem do aparecimento da linguagem em seu contexto social. “Como fenômeno na rede de acoplamento social, o mental não é algo que está dentro de meu crânio” (MATURANA; VARELA, 2005, p. 256). Dependemos, para atuarmos na linguagem, do desenvolvimento histórico de estruturas adequadas. Estas interações linguísticas seletoras são responsáveis pelo nosso devir. Com certeza, iniciamos, com o ciberespaço, uma transformação radical de nosso devir com a linguagem colocada em prática nas comunicações síncronas, sem sabermos avaliar, no entanto, o quanto essa transformação se desvia de nosso projeto de humanidade.

Em um experimento recente com chipanzés que aprenderam a linguagem gestual do Ameslan, da comunicação entre surdos e mudos, foi pedido aos primatas que separassem, em duas bandejas, entre vários objetos, os comestíveis dos não-comestíveis (Savage-Rumbaugh; Rumbaugh; Smith; Lawson apud MATURANA; VARELA; 2005, p. 237-239). Os três chimpanzés Sherman, Austin e Lana não tiveram nenhuma dificuldade em umprir a tarefa. A seguir, foram mostradas imagens visíveis dos objetos comestíveis e dos não-comestíveis e os três realizaram a separação sem problemas. Por fim, diante das imagens, foi pedido a eles que associassem o lexicograma (imagem) a uma nova série de objetos. Nesta última etapa, Lana, a chimpanzé cujo aprendizado diferia dos demais por ter sido instruída por meio de um computador formas de interações linguísticas mais estereotipadas, fracassou. Os demais haviam aprendido a linguagem gestual ediante interações com humanos e com outros chimpanzés. O que o estudo mostrou é que Lana operava em um domínio linguístico mais empobrecido que os demais, o que a incapacitava de generalizar as categorias.

Diante dessas revelações, como pensar em nosso devir se a interação humano-computador- humano, ou simplesmente a comunicação mediada por computador, é cada vez mais caracterizada por uma linguagem artificial? É indubitável que esses sistemas online propiciam envolvimento emocional e possíveis acoplamentos de longo termo entre indivíduos. Entretanto, mesmo com os avanços das interfaces, a interação humano-computador-humano, se comparada à experiência dos acoplamentos presenciais e da ação no espaço concreto, é limitada quanto à interação sensório-motora e não garante um enriquecimento do domínio linguístico, como a experiência dos três chipanzés mostrou.

A dificuldade para se desenhar esses sistemas de interação humano-computador-humano reside no fato de que as interações não são instrutivas, não são resultado de um agente perturbador. O que acontece durante uma interação é determinado pela dinâmica estrutural desse sistema. A comunicação não depende daquilo que se entrega, mas do que acontece com o receptor (MATURANA; VARELA, 2005, p. 218). Como então desenhar esses sistemas de interação para que possam ser de fato sistemas sociais no sentido de Maturana e para que sejam propícios aos acoplamentos consensuais salvaguardando a capacidade de se emocionar e de reagir afetivamente?

Referências

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* “A visão dualística não tem nenhum fundamento real porque a experiência humana de estar em um ambiente é bioculturalmente mediada, de forma que não existe um ‘lado de fora’ (coisas e objetos) independente de e oposto a um ‘lado de dentro’ (mente, conhecimento, percepção e assim por diante)”. (Tradução de Carolina Siqueira Muniz Ventura).