POR UMA GENEALOGIA DA EXPERIÊNCIA DE IMERSÃO TECNOLÓGICA: PERCEPÇÃO E IMAGEM DO SÉCULO XVII AO SÉCULO XIX1
 

Maria Cristina Franco Ferraz

 

Antes do século XIX, o perceptor era geralmente considerado
como um receptor passivo de estímulos provenientes de objetos exteriores que formavam percepções espelhando esse mundo exterior. O que tomou forma nas últimas duas décadas do século XIX, entretanto, foram noções de percepção nas quais o sujeito, como um organismo psicofísico dinâmico, construía ativamente o mundo em torno de si, por meio de um hierarquizado complexo de processos cognitivos e sensoriais,
em mais altos e mais baixos centros cerebrais.

Jonathan Crary


A experiência de imersão sensorial, por vezes enfatizada nos atuais estudos em torno da cibercultura2 e do cinema contemporâneo, supõe uma série de transformações históricas que dizem respeito ao estatuto do sujeito, da percepção e da própria imagem no Ocidente. Pode-se também observar, atualmente, crescente interesse em tematizar e explorar a hiperestimulação auditiva, tantas vezes relegada a segundo plano em função da ênfase na visualidade, o que também deriva de longa história que remonta aos gestos inaugurais da filosofia ocidental. A título de contribuição para o exame do que está em vias de se alterar, na contemporaneidade, em virtude do desenvolvimento crescente de tecnologias de estimulação tanto visual quanto tátil e sonora, cabe aprofundar o exame dessa história. A investigação genealógica permitirá certamente avaliar, em outros trabalhos, o que há efetivamente de novo nesses processos, evitando pelo menos duas ciladas teóricas: a tendência a se autonomizar a esfera tecnológica e a sua implicação mais direta, as diversas máscaras do determinismo tecnológico. Tal é a contribuição e a aposta deste ensaio.

Ao longo do século XIX, ocorreu um processo de modernização dos regimes de percepção e de atenção. Esse processo resultou em uma alteração radical do estatuto da imagem na virada do século XIX para o XX. Retomemos as recentes teses do historiador da arte Jonathan Crary acerca da modernização da percepção. Nos limites deste ensaio, não cabe explicitar de modo integral e detalhado toda a riqueza do denso trabalho de Crary. Esse recuo estratégico ao século XIX oferece uma vantagem suplementar: a de ressaltar de que forma certos traços muitas vezes associados à “pós-modernidade” – fragmentação, desrreferencialização, descentramento do sujeito, para citar alguns dos mais enfatizados – já se encontravam plenamente presentes no século XIX, tanto no âmbito da experiência quanto no da reflexão teórica. Foi ao longo do século XIX que a percepção e a cognição passaram por amplo processo de mutação, no contexto da emergência de formas industrializadas de contemplação e atenção, da aceleração dos processos de produção e consumo nas metrópoles em expansão daquela virada de século.

I – VISÃO E IMAGEM: DO SÉCULO XVII AO XIX


A modernização da percepção foi se dando no mesmo passo em que se disseminavam transportes mecanizados nas cidades e em que se inventavam novas tecnologias de produção e de reprodução de imagens (fotografia, estereoscópio, cinema, por exemplo). Segundo Jonathan Crary, esse processo diz respeito a uma reconfiguração radical do sistema óptico e do modelo epistemológico vigente ao longo dos séculos XVII e XVIII, vinculados ao dispositivo da câmera obscura. A câmera escura, que podia ter a dimensão de um quarto ou ser um artefato portátil, funciona da seguinte maneira: em um ambiente ou caixa totalmente fechados e escuros, apenas um pequeno orifício deixa os raios luminosos penetrarem, produzindo na parede ou na superfície ao fundo uma imagem invertida do que estaria fora. Lentes acabaram sendo utilizadas para corrigir a inversão dessa imagem.

 

Nos séculos XVII e XVIII, a produção da imagem estava especialmente referida a leis da física óptica, a uma física dos raios luminosos de base newtoniana, que não levava em conta a interferência humana. Dizia respeito tão-somente a leis de reflexão e de refração da luz. O olho era em geral entendido por analogia à lente. Assegurava-se, desse modo, a crença em um sujeito e em um objeto dados a priori, em uma relação de exterioridade – portanto, não problemática – entre esses dois polos. A rigor, a corporeidade não intervinha na percepção: quando poderia virtualmente emergir e abalar esse modelo, era imediatamente esquivada.

Por exemplo, na Dióptrica3cartesiana (1637), certa característica potencialmente problemática da visão humana – o fato de termos dois olhos e de apreendermos uma imagem unificada do mundo – só é mencionada para ser imediatamente descartada, através do recurso a uma “pequena glândula” (a glândula pineal) que teria por função sintetizar imagens. Nesse texto em que Descartes condensa e explora concepções de sua época, o recurso a essa explicação por meio de uma glândula não significa, como se poderia supor, a introdução da corporeidade nas relações de percepção. A entrada em cena dessa pequena glândula corresponde, antes, a um modo rápido e eficiente de esquivar um elemento potencialmente problemático para a física óptica de base newtoniana. Sendo as leis da física que presidem à percepção, Descartes enfatiza de modo coerente, ao longo do texto, que não é o corpo que percebe e sente, mas a alma.

O dualismo cartesiano sustenta a distinção inequívoca entre corpo e alma, mas introduz um elemento complicador: unida ao cérebro onde repousa, a alma, responsável pela clareza da razão, pode sofrer efeitos nefastos de “vapores” que circulam na materialidade do corpo. A corporeidade intervém quando, por intoxicação ou por qualquer outro distúrbio, perturba a percepção verdadeira, não delirante, de que a alma nos dota. Essas perturbações provêm, portanto, da união entre a alma e o corpo, ou mais precisamente, entre a alma e sua localização no cérebro. Assim é que, segundo Descartes, tanto os “frenéticos” quanto os que dormem podem ser acometidos por visões de algo que não está efetivamente presente. Como revela claramente esses casos, o corpo só é convocado na Dióptrica para dar conta da possibilidade da percepção falsa. É a isso que nos referimos quando enfatizamos que, no século XVII, o corpo não intervinha no modelo de percepção vigente.

 

Em linhas gerais, nos séculos XVII e XVIII, perceber e conhecer o mundo eram simples efeito de estabilizadoras leis da física e, consequentemente, de um sujeito presente a si, dotado da capacidade de introspecção e de intelecção. Esse sujeito, inerente ao modelo da câmera escura, tinha na racionalidade um apoio seguro para alcançar um conhecimento e uma percepção verazes e objetivos, uma vez eliminados os enganos originados pelo sensível. As imagens que se projetavam no fundo escuro da câmera por onde um único orifício deixava passar os raios solares eram tomadas como efeitos de leis naturais, que independiam do corpo contingente e instável do homem. Os primeiros sinais que evidenciam a derrocada desse modelo óptico e epistemológico surgem em uma obra de Goethe datada de 1810: a Farbenlehre, teoria ou doutrina das cores.

Na parte didática que abre essa volumosa obra, Goethe convoca uma experiência no interior da camera obscura que aponta para o esvaziamento do sistema óptico e do modelo epistemológico clássicos, brevemente sintetizados acima. Goethe sugere a seguinte experiência: no interior da câmera, fixar com os olhos a parte iluminada; a seguir, fechar o orifício de entrada dos raios luminosos. Uma vez realizada essa operação que subverte o princípio mesmo de funcionamento da câmera escura, Goethe propõe que se olhe para a escuridão: nela os olhos passam a vislumbrar uma espécie de imagem circular submetida a um regime de incessantes transformações cromáticas.

Goethe convoca ainda outra experiência. Propõe que se fixe por algum tempo um objeto colorido, que é a seguir retirado da frente dos olhos sem que estes se movam. Serão então percebidas cores e luzes, provenientes de uma imagem que pertence agora ao próprio corpo. Ou seja: conforme evidenciado nessas experiências inéditas propostas por Goethe, a imagem passa a ser também efeito de um olho, de um corpo que vê, o que acarreta evidentemente um forte abalo de toda certeza com relação à realidade percebida. Por sua vez, as cores se deixam contaminar por múltiplos jogos de sombras, rompendo-se sua mera redução à brancura da luz solar, tal como em Newton.

Segundo essa nova perspectiva, nem as leis da física dos raios luminosos, nem a clareza da alma podem por si só sustentar a visão: o olho, com sua fisiologia própria, passa a determinar a visão de um mundo. Esse mundo deixa de ser tomado como exterioridade imediatamente apreensível. Portanto, quando a produção de imagens pode ser desvinculada de um mundo exterior – fixado, estável, seguro –, desestabilizam-se no mesmo gesto as certezas que envolviam tanto o sujeito quanto o objeto da percepção. Os processos de percepção, base para o conhecimento, passam a ser alvo de intensa experimentação, observação, descrição e ciência. Embora a Teoria das cores tivesse representado um fracasso científico, em favor da teoria newtoniana, a introdução da corporeidade operada por Goethe equivaleu a uma mudança de paradigma, reconfigurando o próprio papel e lugar do observador.

Em suma, nos séculos XVII e XVIII, a despeito das diferenças entre as diversas perspectivas filosóficas, os saberes e práticas que atravessaram os dois séculos, o olho era entendido como uma lente. Coerentemente, a binocularidade humana não chegava a se constituir como um problema. No quinto discurso da Dióptrica, ao desenvolver a analogia entre o olho e a lente – ponto de apoio para a aplicação das leis da física à visão –, Descartes sugere experiências de dissecação desse órgão. Esclarece então que o órgão pode ser extraído tanto de um “defunto fresco” quanto de um boi, ou ainda de qualquer outro animal de grande porte (Descartes, 1953, p. 205). Uma vez que o olho era entendido como lente e que ver clara e distintamente era atributo da alma, tanto fazia se o olho dissecado fosse de um homem (vivo ou morto) ou mesmo de um animal. A partir do início do século XIX (com Goethe) e sobretudo das décadas de 1820 e 1830, por conta do desenvolvimento de novas ciências empíricas (principalmente a fisiologia óptica e a psicofisiologia), o olho mergulha na opacidade e na espessura do corpo humano, com sua inevitável contingência e sua variabilidade incontrolável.

Essa nova perspectiva acerca do olho vai implicar uma profunda alteração do estatuto da imagem. Em meados do século XIX, vários pesquisadores, dentre os quais o influente Hermann von Helmholtz, descreveram e estudaram “fenômenos entópticos” (ou mouches volantes, “moscas voadoras”), que nada mais são do que imagens intraoculares. Essas imagens entópticas são aquelas que um olho vê, em circunstâncias especiais, como, por exemplo (e não por acaso), em situações de extrema fadiga. Essas imagens fugidias e por vezes luminescentes são espectros de pequenas linhas ou “cobrinhas” que se interpõem entre o olho e o que lhe é exterior. Os cientistas da época consideraram essas imagens intraoculares como traços fantasmáticos dos vasos sanguíneos ou de partículas constitutivas do próprio tecido ocular. A opacidade da visão ocular chega assim a transformar o próprio olho em objeto da visão. O olho torna-se, portanto, produtor de curiosas imagens, desprovidas de referência necessária a qualquer exterioridade.

O processo de modernização da percepção, em ruptura com o modelo da camera obscura, supõe assim um olho remetido à corporeidade. Como no caso das “moscas voadoras”, em sua opacidade, esse olho pode chegar até mesmo a vislumbrar elementos de sua própria materialidade. Estamos bastante distantes da transparência do olho-lente que caracterizava as abordagens tranquilizadoras que atravessaram os séculos XVII e XVIII. Esvazia-se a analogia entre o olho e a lente, que ancorava a relação de imediatez, de presença e de transparência do sujeito face ao real. Esse tipo de relação entra em colapso, arrastando consigo a estabilidade tanto do sujeito quanto do objeto da percepção. Na esteira desse processo, o próprio ato de conhecer é problematicamente afetado.

No século XIX, a imagem passa a ser produto de um olho fisiologicamente complexo, cada vez mais remetido ao cérebro e ao sistema nervoso central. Por sua vez, o sistema nervoso é, em geral, compreendido através de analogias tecnológicas, em especial através da associação com o telégrafo. Aliás, entre o sistema nervoso e a telegrafia se estabeleceu um vínculo analógico de mão dupla, em uma relação de equivalência e reversibilidade: se o sistema nervoso era descrito por analogia ao telégrafo, por sua vez o telégrafo era entendido por analogia aos nervos. É o que ressalta a pesquisadora Laura Otis: “Se fisiologistas da metade do século XIX viam nervos como telégrafos, os engenheiros que desenhavam as primeiras redes de comunicação tomavam suas redes em expansão como estruturas orgânicas.” (Otis, 2001, p. 23, tradução nossa).

Observe-se também uma passagem de Hermann von Helmholtz (apud Crary, 1992, p. 93) bastante expressiva: “Os nervos têm sido freqüentemente, e de modo pertinente, comparados a fios de telégrafo”. Conforme assinalado, o marco inicial de todo esse processo, que viria a culminar nas duas últimas décadas do século XIX, foi, como vimos, o livro Teoria das cores, de Goethe. Cabe retornar ainda uma vez a essa obra, cujo insucesso científico exprime a radicalidade da mudança de paradigma efetuado.

Na física óptica newtoniana, as cores estavam referidas tão-somente à luz branca. A luz solar, infletindo-se em graus variados e geometricamente determinados – em função da hipótese newtoniana da “diversa refrangibilidade” –, produzia todo o espectro de cores. A geometria, plenamente compatível com a natureza, era aplicada à produção das cores. Operava-se uma verdadeira naturalização da geometria: não é à toa que Descartes, na já citada Dióptrica, menciona uma “geometria natural” (Descartes, 1953, p. 222). Isso explica o privilégio clássico do espaço (e não do tempo) para se tratar da percepção, a ênfase no sentido da visão que deriva dessa concepção espacializada, bem como a curiosa analogia então frequente entre visão e tato.

Na medida em que ver era atributo da alma – e não do corpo –, ao longo dos séculos XVII e XVIII, a cegueira se tornou, significativamente, paradigmática da visão. O cego que tateia o mundo com dois bastões, presente na Dióptrica cartesiana e exemplo clássico da visão também retomado no século seguinte, torna-se o suporte ideal tanto de uma concepção espacializada, geometrizante e intelectualizada da visão quanto da analogia visão/tato.

 

Aliás, o próprio privilégio do sentido da visão, pelo menos desde a filosofia socrático-platônica, auxiliou e permitiu uma matematização das relações de percepção (e de conhecimento) apta a evacuar as incertezas próprias ao puro sensível. Esse mesmo privilégio direcionou o tratamento da percepção para o campo do espaço, esquivando o vetor (e o complicador) da temporalidade.

A analogia visão/tato, o modelo da camera obscura, a noção espacializada da percepção e o exemplo da cegueira prevaleceram também ao longo do século XVIII. Evidenciam-se, por exemplo, na Carta sobre os cegos para o uso dos que vêem, de Denis Diderot (1749). O tema da cegueira como modelo da visão também é utilizada por Diderot como sátira à obscuridade de seu tempo, o que foi imediatamente bem entendido: a publicação do livro rendeu a Diderot três meses de encarceramento na prisão de Vincennes. Embora Descartes e Diderot possam ser situados no mesmo modelo da camera obscura, há, entretanto, algumas diferenças interessantes, no tocante ao tema da produção de imagens, entre a Dióptrica e a Carta sobre os cegos.

Enquanto em Descartes prevalece a metáfora da impressão – os objetos externos se imprimiam no fundo do olho –, em Diderot a produção de imagens passa a ser remetida ao mimético, mais especificamente à pintura: no fundo dos olhos, como em uma tela, miniaturas do mundo visível seriam pintadas com admirável exatidão (Diderot, 1998, p. 136-138). Nas Adições à carta (1782), publicadas por Diderot décadas mais tarde, o olho é explicitamente tratado como uma “tela viva”, uma tela de uma delicadeza e perfeição extremas. Em conformidade com as mesmas leis da reflexão e da refração de base newtoniana, Diderot explica então que o ar que atinge o objeto se reflete em direção ao olho, que recebe assim uma infinidade de impressões diversas. A variedade desses elementos pintaria, segundo o autor, os objetos miniaturizados na tela viva do olho.

Na Carta sobre os cegos, Diderot explora o exemplo do ilustre matemático cego Nicolas Saunderson, professor em Cambridge e inventor de uma aritmética palpável. Nas Adições à carta, Diderot relembra e sintetiza suas discussões com a jovem cega Mélanie de Salignac, morta aos 22 anos, em 1766. Mélanie considerava a geometria a verdadeira ciência dos cegos e acrescentava: “O geômetra passa quase toda a sua vida de olhos fechados.” (Diderot, 1998, p. 161). Quando Diderot lhe propõe um problema de geometria a partir de um cubo – questão que a jovem cega resolve brilhantemente, sem titubear –, o filósofo, fascinado, lhe pergunta: “onde a senhora vê isso?”. A cega responde, de modo direto e apropriado: “Em minha cabeça, como o senhor.” (Diderot, 1998, p. 161).

Remetida às leis da física dos raios luminosos apreendidas matematicamente, a visão resulta de um movimento de introspecção e de uma atividade de intelecção. É por isso que o cego dotado de inteligência matemática, espacial, geometrizante exprime a potência mais alta da visão nos séculos XVII e XVIII. Ver era então tatear o mundo, de olhos fechados, servindo-se de bastões capazes de esquadrinhar o espaço para dele extrair leis geométricas, plenamente compatíveis com uma “geometria natural”.

Subvertendo radicalmente esse modelo clássico, no limiar do século XIX Goethe começou por atribuir as cores a uma fisiologia: a parte didática de seu tratado abre-se com uma sessão intitulada “cores fisiológicas”. A essa sessão se seguem duas outras partes, uma física e outra química. A própria imagem passa a ser tematizada a partir de um jogo entre luz e sombra. Contra Newton, as cores em Goethe dizem respeito, antes de tudo, à fisiologia do corpo. Para Goethe, estudar as cores implicava três campos de saber: em primeiro lugar, a fisiologia; em seguida, a química e a física. Aprofundando a radicalidade do gesto de Goethe, Shopenhauer, que acompanhava de perto as pesquisas científicas de sua época, passou a remeter as cores exclusivamente à fisiologia do corpo humano.

A partir do momento em que a visão passa a ser ancorada na corporeidade, o próprio objeto do conhecimento e da percepção (o “mundo”) perde seu caráter assegurado, previamente dado, e novos fenômenos – pós-imagem, persistência retiniana, paralaxe, disparidade binocular – passam a ser considerados como mediações incontornáveis em todo perceber. Nessa condição, esses fenômenos se tornam objeto de intensa investigação no âmbito das novas ciências em expansão entre as décadas de 20 e 40 do século XIX (fisiologia óptica e psicofisiologia). Posteriormente, são investigados nas experiências laboratoriais da psicologia científica – com Wundt, por exemplo, que funda um laboratório em Leipzig em 1879 – e ainda na neurologia nascente, já no limiar do século XX, com Charles Sherrington.

O processo de modernização da percepção corresponde a um segundo movimento da Modernidade, tal como proposto por Hans Ulrich Gumbrecht (1998). Esse segundo movimento é caracterizado por um observador de segundo grau, que volta sua observação sobre si próprio, sobre o corpo e sua surpreendente e complexa fisiologia.

 

Ora, segundo Crary, foi no âmbito dessa ampla mutação de cunho epistemológico que se desenvolveram novos dispositivos ópticos, que migraram dos laboratórios tanto para as feiras populares quanto para as casas burguesas (taumatrópios, estereoscópios etc). Esses dispositivos e brinquedos ópticos foram rapidamente inseridos na nascente cultura do espetáculo e vinculados a um novo regime de atenção, funcionando em um continuum com formas variadas de desatenção, devaneio, transe e sonambulismo.

O processo de modernização remete a uma percepção inexoravelmente atrelada à dinâmica de um corpo em movimento. A imagem passa a ser produto de um corpo vivo, com seu modo de funcionamento específico e facilmente afetável. Para Goethe e para os cientistas mais influentes do século XIX – como Johannes Müller e o já mencionado Helmholtz –, pós-imagens e cores fisiológicas podem ser produzidas por socos em um olho ou pela ingestão de substâncias alucinógenas. Como mostram claramente as experimentações em torno da pós-imagem ou da imagem entóptica, aquilo que se vê pode ser desrreferencializado com relação a algo realmente existente fora do sujeito. O visível pode estar única e exclusivamente vinculado a um corpo afetado por estímulos internos ou externos.

Da transparência de um olho que capta um mundo externo prévio, do olho transparente – olho-lente – passa-se, no novo regime, a um olho apto a produzir imagens, reagindo orgânica e temporalmente a determinados estímulos internos ou externos. Assim, no século XIX, a ênfase na espacialidade claramente expressa no exemplo clássico da cegueira se esvazia, em favor do vetor da temporalidade. Não em função de um suposto avanço das ciências, mas por conta de uma alteração radical dos modelos de percepção e de conhecimento, no contexto de profundas transformações históricas. O fenômeno da persistência retiniana torna-se então objeto de numerosos estudos e experiências, com vistas à sua quantificação e controle. Essas experiências e novos saberes contribuíram para adequar os corpos modernos a novos regimes perceptivos, vinculados à mecanização crescente da produção e à lógica do consumo. Cabe lembrar que a duração das imagens na retina e o aspecto necessariamente cinético da percepção são elementos inerentes à invenção de uma das mais bem sucedidas tecnologias de produção de imagens surgida no final do século XIX: o cinema.

Quando a percepção passa a ser remetida a um organismo vivo, com sua fisiologia específica, torna-se inevitavelmente defectível, variável e – sobretudo – duracional. Ou seja: a modernização da percepção, caracterizada por uma incorporação (no sentido literal) da visão, parece ter tornado científica e filosoficamente incontornável repensar a temporalidade. Apreender imagens, perceber, conhecer passam a ser encarados como processos dinâmicos, que duram, instalando-se em uma temporalidade que se escoa ininterruptamente. Intervém assim necessariamente na percepção o aspecto dinâmico, processual. Desse modo, como mostrou Bergson no livro Matéria e memória (1896), percepção e memória passam a se entrelaçar.

Ao longo do século XIX, portanto, mutações históricas favoreceram a alteração do sujeito da percepção e do conhecimento, com amplas implicações na ordem dos saberes e da própria experiência corporal. A intensificação de estímulos sensoriais, atrelada a uma crescente imersão tecnológica, ameaçava transformar o homem moderno ocidental em um simples autômato e em um sonâmbulo social. Como salientou Jonathan Crary (2000), certos teóricos do final do século XIX equipararam as novas formas de industrialização da contemplação a estados relativos de hipnose e de sonambulismo.4 Como se sabe, a hipnose era então amplamente utilizada em experimentos científicos, em práticas terapêuticas (por Charcot e Janet, por exemplo) e ainda não ficara relegada ao charlatanismo dos music hall. Crary enfatiza de que modo a extensão desses estados hipnóticos mais ou menos intensos a toda a vida social frequentava as preocupações da sociologia nascente, em especial as reflexões de Gabriel Tarde e de Gustave Le Bon. Ambos os autores foram eclipsados, ao longo de várias décadas, em favor da sociologia prevalecente, de base durkheimeana. Eis o que ressalta Crary:

Tarde equacionou, decididamente, existência social e sonambulismo, ou seja, um estado caracterizado por uma elevada receptividade à sugestão. Le Bon e outros ressaltaram aspectos hipnóticos da vida das multidões, mas Tarde foi mais longe: “Não devo parecer fantasioso ao pensar o homem social como um verdadeiro sonâmbulo... O estado social, como o hipnótico, é apenas uma forma de sonho”. (Crary, 2000, p. 242).
O pintor norueguês Edvard Munch também nos legou imagens inquietantes desse grito oco e mudo, sem rosto, misto de desespero e de sonambulismo em que, em sua visão, os homens modernos estavam se transformando. O progressivo declínio da prática e do tema da hipnose ao longo do século XX pode, entretanto, nada ter de assegurador. Talvez apenas exprima o grau de naturalização dessas formas mais ou menos intensas de sonambulismo e de hipnose que permeiam hábitos da vida contemporânea. Afinal, a absorção no ciberespaço, diante das telas luminosas dos computadores, produz em geral efeitos evidentes de anestesia com relação a sons e a contatos com o ambiente, bem como um esquecimento do estado do próprio corpo, da coluna vertebral, do pescoço, das mãos. Ao mesmo tempo, propicia intensas experiências de imersão sensorial, convocando não apenas a visão e a audição, mas o próprio tato, uma tangibilidade ubíqua do mundo ambiente. O recuo ao século XIX nos permite repensar certos temas recalcados, além de suscitar novas questões. Por exemplo, o vínculo entre imersão tecnológica e novas formas de sonambulismo e hipnose, pesquisa que resta a se fazer.


Referências


BERGSON, Henri. Mémoire et vie: textes choisis. Paris: PUF, 1975.

CHERTOK, Léon; STENGERS, Isabelle. O coração e a razão: a hipnose de Lavoisier a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture. Massachusetts: MIT Press, 2000.
_______. Techniques of observer: on vision and modernity in the XIXth century. Massachusetts: MIT Press, 1992.
_______. A visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

DESCARTES, René. Oeuvres et lettres. Paris: Gallimard, 1953.

DIDEROT, Denis. Oeuvres philosophiques. Paris: Classiques Garnier, 1998.

FERRAZ, M. C. Franco. Nove variações sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
_______. Percepção e imagem na virada do século XIX ao XX. In: ARAÚJO, Denize C. (Org.). Imagem (ir)realidade: comunicação e cibermídia. Porto Alegre: Sulina, 2006.

GOETHE, Johann W. von. Zur farbenlehre. Weimar: H. B. Nachfolger, v. 4, 1987.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. A modernização dos sentidos. São Paulo: Ed. 34, 1988.

OTIS, Laura. The other end of the wire: uncertainties of organic and telegraphic communication. In: Preprint-publicação do Instituto Max-Planck de História da Ciência, Berlim, v. 184, 2001.

PEREIRA, Vinícius Andrade. G.A.M.E.S. 2.0? Gêneros e gramáticas de arranjos e ambientes midiáticos mediadores de experiências de entretenimento, sociabilidades e sensorialidades. In: COMPÓS, 17., 2008, São Paulo. Anais eletrônicos... São Paulo: COMPÓS, 2008. Disponível em: http://www.compos.org.br//data/biblioteca_294.pdf. Acesso em: 22 ago.

____________________
1 Uma versão embrionária e parcial deste artigo foi publicada em Imagem (Ir)Realidade, organizado por Denize Correa Araújo (Porto Alegre: Sulina, 2006).

2 Cf., por exemplo, as recentes pesquisas apresentadas por Vinícius Andrade Pereira (2008) na COMPÓS - Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, as quais enfatizam as sensorialidades estimuladas pelos novos jogos eletrônicos.

3 O termo Dióptrica – título de uma sessão do Discurso do método, de Descartes – refere-se a uma parte da Física dedicada justamente ao estudo da refração da luz.

4 Acerca da hipnose, em um recorte historicizante e crítico, cf. Chertok e Stengers (1990).