POR UMA GENEALOGIA DA EXPERIÊNCIA DE IMERSÃO TECNOLÓGICA: PERCEPÇÃO E IMAGEM DO SÉCULO XVII AO SÉCULO XIX1
Maria Cristina Franco Ferraz Antes do século XIX, o perceptor era geralmente considerado |
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I – VISÃO E IMAGEM: DO SÉCULO XVII AO XIX
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Nos séculos XVII e XVIII, a produção da imagem estava especialmente referida a leis da física óptica, a uma física dos raios luminosos de base newtoniana, que não levava em conta a interferência humana. Dizia respeito tão-somente a leis de reflexão e de refração da luz. O olho era em geral entendido por analogia à lente. Assegurava-se, desse modo, a crença em um sujeito e em um objeto dados a priori, em uma relação de exterioridade – portanto, não problemática – entre esses dois polos. A rigor, a corporeidade não intervinha na percepção: quando poderia virtualmente emergir e abalar esse modelo, era imediatamente esquivada. |
Em linhas gerais, nos séculos XVII e XVIII, perceber e conhecer o mundo eram simples efeito de estabilizadoras leis da física e, consequentemente, de um sujeito presente a si, dotado da capacidade de introspecção e de intelecção. Esse sujeito, inerente ao modelo da câmera escura, tinha na racionalidade um apoio seguro para alcançar um conhecimento e uma percepção verazes e objetivos, uma vez eliminados os enganos originados pelo sensível. As imagens que se projetavam no fundo escuro da câmera por onde um único orifício deixava passar os raios solares eram tomadas como efeitos de leis naturais, que independiam do corpo contingente e instável do homem. Os primeiros sinais que evidenciam a derrocada desse modelo óptico e epistemológico surgem em uma obra de Goethe datada de 1810: a Farbenlehre, teoria ou doutrina das cores. |
Aliás, o próprio privilégio do sentido da visão, pelo menos desde a filosofia socrático-platônica, auxiliou e permitiu uma matematização das relações de percepção (e de conhecimento) apta a evacuar as incertezas próprias ao puro sensível. Esse mesmo privilégio direcionou o tratamento da percepção para o campo do espaço, esquivando o vetor (e o complicador) da temporalidade. |
Ora, segundo Crary, foi no âmbito dessa ampla mutação de cunho epistemológico que se desenvolveram novos dispositivos ópticos, que migraram dos laboratórios tanto para as feiras populares quanto para as casas burguesas (taumatrópios, estereoscópios etc). Esses dispositivos e brinquedos ópticos foram rapidamente inseridos na nascente cultura do espetáculo e vinculados a um novo regime de atenção, funcionando em um continuum com formas variadas de desatenção, devaneio, transe e sonambulismo. Tarde equacionou, decididamente, existência social e sonambulismo, ou seja, um estado caracterizado por uma elevada receptividade à sugestão. Le Bon e outros ressaltaram aspectos hipnóticos da vida das multidões, mas Tarde foi mais longe: “Não devo parecer fantasioso ao pensar o homem social como um verdadeiro sonâmbulo... O estado social, como o hipnótico, é apenas uma forma de sonho”. (Crary, 2000, p. 242).O pintor norueguês Edvard Munch também nos legou imagens inquietantes desse grito oco e mudo, sem rosto, misto de desespero e de sonambulismo em que, em sua visão, os homens modernos estavam se transformando. O progressivo declínio da prática e do tema da hipnose ao longo do século XX pode, entretanto, nada ter de assegurador. Talvez apenas exprima o grau de naturalização dessas formas mais ou menos intensas de sonambulismo e de hipnose que permeiam hábitos da vida contemporânea. Afinal, a absorção no ciberespaço, diante das telas luminosas dos computadores, produz em geral efeitos evidentes de anestesia com relação a sons e a contatos com o ambiente, bem como um esquecimento do estado do próprio corpo, da coluna vertebral, do pescoço, das mãos. Ao mesmo tempo, propicia intensas experiências de imersão sensorial, convocando não apenas a visão e a audição, mas o próprio tato, uma tangibilidade ubíqua do mundo ambiente. O recuo ao século XIX nos permite repensar certos temas recalcados, além de suscitar novas questões. Por exemplo, o vínculo entre imersão tecnológica e novas formas de sonambulismo e hipnose, pesquisa que resta a se fazer. |
Referências
CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture. Massachusetts: MIT Press, 2000.
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1 Uma versão embrionária e parcial deste artigo foi publicada em Imagem (Ir)Realidade, organizado por Denize Correa Araújo (Porto Alegre: Sulina, 2006).
2 Cf., por exemplo, as recentes pesquisas apresentadas por Vinícius Andrade Pereira (2008) na COMPÓS - Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, as quais enfatizam as sensorialidades estimuladas pelos novos jogos eletrônicos. 3 O termo Dióptrica – título de uma sessão do Discurso do método, de Descartes – refere-se a uma parte da Física dedicada justamente ao estudo da refração da luz. 4 Acerca da hipnose, em um recorte historicizante e crítico, cf. Chertok e Stengers (1990). |