ABCIBER | Simpósios e Encontros, ABCIBER XIII - SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCIBER 2020

ISSN : 2175-2389
COVID-19 NAS MÃDIAS: EM QUEM CONFIAR? NARRATIVAS, ATORES E POLÊMICAS SOBRE A PANDEMIA
Júlia da Matta

Última alteração: 2021-03-18

Resumo


O contexto social e comunicacional no qual emerge a pandemia está profundamente relacionado com a reconfiguração das referências que até meados do século XX orientavam o debate e a construção de causas públicas (Gusfield,1981). A partir daí, intensificam-se os questionamentos em relação a três instâncias centrais da modernidade: a ciência, o jornalismo e a política (Guiddens, 1991; Beck, 1992; Miguel, 1999; Gauchet, 2008). São exemplos relevantes os questionamentos de movimentos ecológicos e antivacina; a crise enfrentada pelos meios tradicionais de comunicação, que enfraquece seu papel mediador, assim como a desconfiança na democracia representativa e suas instituições, expressa nos movimentos pró-democracia direta.

O processo de midiatização da vida social é, ao mesmo tempo, vetor e palco dessa reconfiguração (Fausto Neto, 2008; Sodré, 2014). Um de seus sintomas mais eloquentes manifesta-se agudamente nas plataformas digitais, onde indivíduos e grupos apresentam as mais diferentes crenças e experiências como fontes de autoridade e reivindicam credenciais antes reservadas a especialistas dos diferentes campos de saber. As incertezas que ainda cercam a pandemia intensificam essas características, especialmente no Brasil, que experimenta altos níveis de instabilidade e polarização. Em um mundo caracterizado pelo excesso de informação e pela desconfiança nas autoridades, a recorrente pergunta ”œem quem confiar?” torna-se central também no enfrentamento da epidemia.

Em um mundo caracterizado pela hiperconexão em tempo real, as notícias sobre a pandemia acompanham par e passo o ritmo da propagação do vírus. Notícias que, desde o advento e popularização da internet, não têm nos meios jornalísticos sua principal origem, já que a comunicação em rede promove a escalada também exponencial dos produtores e da circulação de informações em diferentes plataformas digitais, atravessadas pelas lógicas algorítmicas numa sociedade marcada pela datificação (Couldry; Campanella, 2019). Por esses caminhos, circulam também com intensidade e alcance inéditos discursos de indivíduos baseados em suas experiências pessoais, familiares, na tradição, na religiosidade, em suas convicções políticas e ideológicas, estabelecendo relações diversas entre si de convergência, conflito ou reforço.  Mesmo no meio médico, observam-se declarações contra as recomendações oficiais e alertas das autoridades científicas. Nesse cenário marcado pela imprevisibilidade, proximidade da morte, medo e ansiedade, a confiança é um valor inestimável.

Essas características, conjugadas com outras mudanças sociais, fazem da comunicação uma dimensão central da pandemia, dada sua capacidade de interferir simbólica e materialmente no curso da doença, ao reforçar as formas de adesão ou de resistência às medidas de controle e prevenção recomendadas por especialistas e autoridades sanitárias. Torna-se, por consequência, uma das frentes decisivas para seu enfrentamento.

Dentro deste contexto, essa é uma pesquisa em desenvolvimento aprovada no edital do MCTIC/CNPq de 2020 e que propõe como objetivo mapear e analisar as controvérsias e polêmicas acerca de notícias veiculadas sobre a COVID-19. Trata-se de uma investigação qualitativa, com a adequação de metodologias aptas a mapear formas de interação e fluxos transmidiáticos, o que se somará ao debate sobre o tema. Conjuga-se o referencial teórico-metodológico dos métodos digitais e o da análise sociodiscursiva. A análise crítica, na perspectiva dos métodos digitais de investigação, percebe a internet não como um repositório de conteúdo, e sim como uma fonte para o diagnóstico de mudanças sociais e culturais. Para tanto, são consideradas as dinâmicas próprias do meio, as especificidades da plataforma estudada e o caráter instável dos objetos digitais (Rogers, 2015).

A partir do mapeamento dos temas com maior ressonância, iremos localizar os pontos que catalisam os principais medos, ansiedades e conflitos sociais. Desta cartografia fazem parte os modos com que os protagonistas buscam construir legitimidade e, ainda, o que (e quem) merece (des)confiança, os valores e sentidos com que se identificam. Logo, nosso tema COVID-19 e controvérsias. Optamos por não usar o termo Fake News, por termos, ao longo de nosso mapeamento, constatarmos que alguns vídeos realmente eram verídicos, porém descontextualizados. Por isso, nosso trabalho está mais afim da ética em informação e crise do ponto de vista central, pontos ressaltados no eixo temático escolhido (28).

Iniciamos a pesquisa lendo matérias de duas agências de checagem Boatos.Org[1] e Fato ou Fake[2] e preenchendo uma tabela em que dividimos os assuntos sobre o novo Coronavírus por Eixos temáticos, que somam sete: Distanciamento social (isolamento vertical, horizontal, quarentena, lockdown); Prevenção (máscara, alcóol em gel, vacina); Economia (auxilio emergencial, desabastecimento, saques, desemprego); Tratamento (medicamento, substancias, etc); Gravidade da doença (mortes etc); Veracidade da Doença e Disputa político-partidária.

Até agora mapeamos as reportagens de março a julho e estenderemos esse período até setembro, para entendermos os deslocamentos de sentidos dos discursos dessas matérias mês a mês. No mês de julho, por exemplo, o que nos chamou mais atenção foi quantidade, no Boatos.Org, de notícias relacionadas à prevenção. O tema da cloroquina toma o maior espaço, juntamente com o uso da ivermequitina, Vejamos as manchetes:

Cascas de laranja e limão contêm ivermectina e cloroquina e curam a Covid-19 #boato[3] ; Porto Feliz (SP) teve 1500 casos de Covid-19 e zero mortes graças ao uso da cloroquina #boato[4]; Ministros que impediram uso da hidroxicloroquina serão processados na França #boato[5]; Ivermectina ajudou Ãfrica a controlar pandemia de Covid-19 no continente #boato[6]

Para reiterar a relevância dessa pesquisa e assim justifica-la por meio de embasamentos científicos. no momento em que este projeto é escrito, os casos confirmados de COVID-19 chegam a quase 3 milhões em todos os continentes e registram-se mais de 200 mil óbitos (Johns Hopkins University, 2020). No Brasil, já são mais de 2 milhões de casos e 164 mil mortes (Brasil, 2020), levando-o a figurar no ranking dos dez primeiros países em número de casos. Conhecida como coronavírus, a síndrome respiratória aguda grave referente ao vírus Sars-CoV-2 provocou uma crise sanitária de proporções mundiais, afetando a economia e modificando os hábitos e costumes da população ao redor do planeta. Desde o anúncio dos primeiros casos de uma pneumonia desconhecida, na China, sua disseminação atinge níveis inéditos de velocidade e magnitude, levando a Organização Mundial de Saúde a decretar  estado de pandemia em 11 de março de 2020. Esse cenário de tamanha gravidade tornou-se o centro das preocupações mundiais, mobilizando esforços de cientistas e autoridades sanitárias para conhecer o vírus, deter sua propagação e criar formas de prevenção, tratamento e cura.


[1] Disponível em: https://www.boatos.org/

[2]Disponícel em: https://oglobo.globo.com/fato-ou-fake/

 

[3] Disponível em: https://www.boatos.org/saude/cascas-laranja-limao-contem-ivermectina-cloroquina-curam-covid-19.html

[4] Disponível em: https://www.boatos.org/saude/porto-feliz-sp-1500-casos-covid-19-zero-mortes-gracas-cloroquina.html

[5] Disponível em: https://www.boatos.org/mundo/ministros-impediram-uso-hidroxicloroquina-processados-franca.html

[6] Disponível em: https://www.boatos.org/saude/ivermectina-ajudou-africa-controlar-pandemia-covid-19.html


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