Última alteração: 2021-03-18
Resumo
Em 2020, a pandemia do CoronavÃrus alterou de forma radial, ainda que por alguns meses, o funcionamento do mundo. Os impactos, para além da perda de mais de um milhão de vidas e o sofrimento de vítimas, amigos e familiares, foram sentidos, em maior ou menor grau, em todos os setores das mais diversas sociedades. Uma dessas consequências no Rio de Janeiro, Brasil, foi a construção do PerÃodo Letivo Excepcional (PLE), uma resposta da Universidade Federal do Rio de Janeiro para dar prosseguimento ao calendário acadêmico desse ano tão tristemente incomum. Sob a supervisão da professora Suzy Santos, jovens negros pós-graduandos aceitaram o desafio de conduzir a disciplina eletiva ”œRaça, Comunicação e Tecnologias: narrativas e saberes”. Este artigo traz uma ampliação das ideias que apresentamos na disciplina, que envolve uma apropriação do termo ”œPretuguês”, de Lélia Gonzalez, a história de um coletivo de mulheres negras na disputa de narrativas na rede e reflexões sobre a importância dos códigos que estão por trás dos dispositivos digitais na virtualização da vida pós-pandêmica.
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As provocações resultam de pronunciamentos de Angela Davis e Sulei Carneiro. Quando veio ao Brasil, em 2019, Angela Davis, lotou o Cine Odeon e a Praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, e no início de seu discurso, disse não entender porque tanta gente estava ali para ouvi-la uma vez que tÃnhamos Lélia Gonzalez. Em 2020, Sulei Carneiro disse, em participação no podcast Tecnopolítica, que Geledés, organização da qual é coordenadora executiva, foi a primeira organização da sociedade civil no Brasil a criar um site em 1997. Diante da surpresa dos apresentadores, Sueli diz que tem a impressão de que a relação de negros e a tecnologia, que é bastante antiga, é coisa de outro mundo.
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Conectamos as duas falas e imaginamos se poderia haver uma conversa entre Lélia Gonzalez e a tecnologia. Inicialmente, pensamos no Pretuguês Tecnológico como uma tradução. Falávamos sobre a necessidade de interpretação e tradução da linguagem computacional para um público de mulheres negras, que ainda não está familiarizado com ela, e que a virtualização da vida causada pela pandemia tornava urgente.
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Lélia Gonzalez foi uma mulher negra mineira também descendente de indÃgenas. Caçula de 18 irmãos que fizeram com que ela estudasse. Nos anos 50 e 60 se graduou em Ciências e Letras, História, Filosofia, Antropologia. Na graduação, começou a perceber algumas contradições relacionadas à raça porque, até então, seu corpo refletiva um amplo processo de embranquecimento. Na universidade, quando sua percepção foi ampliada, ela passou a adotar a luta contra as opressões, especialmente o racismo e o sexismo, como caminho de vida. Construiu pelo menos quatro categorias originais: amefricanidade (Brasil, Ãfrica e América Latina), feminismo afrolatinoamerciano, mulher negra (pensando a interseccionalidade de gênero, classe e raça, mesmo antes que o termo fosse cunhado por Kimberlee Krenshaw); além do Pretuguês. Entendia que a universidade era um espaço importante para a construção das mudanças sociais necessárias. Lélia legitimou a complexidade das mulheres negras e conferiu respeitabilidade à produção intelectual de mulheres negras militantes. Estabeleceu diálogos com os movimentos que lutavam por direitos tanto nos Estados Unidos como em paÃses do Caribe e da Ãfrica, que viviam o contexto da descolonização. Entendeu que o Brasil fazia uma sÃntese da experiência africana na diáspora. Quando houve a abertura política, viu que as mulheres negras brasileiras deviam ocupar também os espaços políticos. Foi fundamental na derrubada do mito da democracia racial. Esse que diz que racismo no Brasil não existe porque somos todos miscigenados e que esse fato tornaria nossa convivência pacÃfica. Lélia fez uma leitura incrível da realidade, articulou e relacionou grandes temas e apontou caminhos de luta para superação do racismo e do sexismo. Botava a cara pra bater. Em bom Pretuguês, talvez, hoje, dirÃamos que ela botaria a cara na live, com toda sua estética, com toda sua existência, com todo seu corpo político, com toda sua linguagem. Com toda sua capacidade de falar e sensibilizar sobre legitimidade da luta pela libertação negra.
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"Minoria a gente não é, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é português é 'pretuguês'". (GONZALEZ, 1988b)
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Ao estudarmos Lélia Gonzalez, ampliamos a compreensão da apropriação do termo e o Pretuguês Tecnológico passou a se configurar não só numa tradução, mas numa outra linguagem de programação carregada de ancestralidade. Percebemos também que há tempos, as mulheres negras sabem, através da importância da linguagem, que a tecnologia possui um papel preponderante nas sociedades atuais e que se quisermos uma sociedade livre do racismo, do sexismo e das opressões, a gente tem que incidir também na tecnologia.
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A ousadia dessa proposta vem de amefricanidade, um conceito desenvolvido por Gonzalez com o qual podemos designar a todos nós, povos das Américas, como amefricaladinos, incorporando um processo histórico afrocentrado de intensa dinâmica cultural, adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas de existência. Lélia destaca que o racismo tirou o nosso legado, nossa dignidade, história, contribuição para o avanço da humanidade nos níveis filosófico, cientÃfico, artÃstico e religioso. Para ela, é preciso reconhecer a heroica resistência e criatividade da luta contra a escravização, o extermÃnio, a exploração, a opressão e a humilhação. As memórias dos povos escravizados foram apagadas e suas vozes foram silenciadas, fazendo com que as pessoas negras acreditassem que não houve luta pela liberdade.
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Quanto a nós, negros, como podemos atingir uma consciência efetiva de nós mesmos, enquanto descendentes de africanos, se permanecemos prisioneiros, "cativos de uma linguagem racista"? (GONZALEZ, 1988)
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A fala, a voz, tão presente nos escritos de Lélia Gonzalez, direciona o início da Blogagem Coletiva Mulher Negra, que nasce com o objetivo de aproximar os debates do Dia da Consciência Negra e o Dia Internacional da Não-violência contra a Mulher. O resultado mostrou a existência de um grupo de mulheres negras escrevendo muito e bem. Apontou também, a necessidade de criação de espaços para visibilizar essas escritas. Dessa iniciativa surgiu as Blogueiras Negras, que formam hoje uma comunidade com mais de 1.300 mulheres, que lutam, vivem e partilham um projeto feminista, antirracista e tecnológico na sociedade. No entanto, só recentemente ”˜as mulheres de pena e teclado”™ conseguiram se assumir como desenvolvedoras de tecnologia.
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Graciela Selaimen, no artigo ”œMulheres desenvolvedoras de tecnologias ”“ o desafio das histórias invisíveis que moram entre zeros e uns”, fala sobre a necessidade de aumentar a atuação e a presença de mulheres na tecnologia, nos espaços online, na produção coletiva de conhecimento. Ela pergunta quais seriam as possibilidades da criação de uma linguagem computacional que não coloque 'o homem', o ser masculino, no lugar central. Para ela, escrever códigos pode ressignificar a história das mulheres.
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”œCódigos e protocolos computacionais determinam e governam a maneira como tecnologias de informação e comunicação são conformadas, adotadas, implementadas e utilizadas pelas pessoas. Artefatos tecnológicos são artefatos políticos - incorporam visões de mundo e formas específicas de exercÃcio de poder em vários níveis - sendo que é no nível dos códigos e dos protocolos que este exercÃcio ocorre de maneira mais invisível. Não percebemos o código enquanto ele opera ”“ por isso mesmo, a necessidade de se olhar para os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais embutidos na construção de códigos e protocolos é ainda mais relevante, levando-se em conta que as tecnologias podem servir a uma variedade de interesses; podem fortalecer as estruturas do poder hegemônico e também podem fortalecer a resistência contra estas estruturas.”
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Shoshana Zuboff, autora de ”œThe age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power”, avalia que reino digital está ultrapassando e redefinindo tudo o que é familiar mesmo antes de termos tido uma chance ponderar e decidir. Diz a autora que estamos celebrando um mundo em rede, que se enriquece de nossas capacidades e perspectivas e dá origem a novos territórios - muitas das vezes de ”œansiedade, perigo e violência”. (ZUBOFF, 2019, p. 11)
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Safyia Umoja Noble problematiza questões do capitalismo algorítmico com uma abordagem específica sobre a construção de quem constrói os códigos das plataformas digitais que usamos atualmente. Noble fala sobre como essas sentenças digitais têm reforçado relações sociais opressivas através de modos de perfilamento e discriminação comercial racial. Ela destaca, assim como Graciela Selaimen, que os algoritmos operam de forma invisível e silenciosa, cercados por patentes que impedem que saibamos como eles operam e quais valores priorizam. Noble traz o ponto de vista de uma mulher negra no mundo da tecnologia. Revela que foi criada sabendo que opressão e racismo não são aceitáveis e contra eles teria que levantar sua voz de forma qualificada porque sua fala sofreria incontáveis tentativas de desqualificação.
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Comemoramos o aumento da presença de mulheres negras na tecnologia, mas a pandemia da COVID-19 nos mostra que precisamos ousar mais porque o mundo não voltará a ser como antes e os processos de virtualização já ocupam um lugar significativo do nosso cotidiano. Pretuguês Tecnológico, traz uma perspectiva de ancestralidade que valoriza o legado das mulheres que antes de nós vem construindo possibilidades de um mundo sem opressão ou exploração.