Última alteração: 2023-12-05
Resumo
O texto propõe a ampliação do debate iniciado por Marques e Martino (2018) sobre o tempo, enquanto uma significativa categoria analítica, a partir do conceito do devir minoritário de Deleuze em interface com o neoliberalismo. As inquietações iniciais direcionam nosso percurso analítico para pensarmos o tempo passado, em processos comunicacionais, para situarmos o tempo presente e criarmos condições de possibilidade na transformação do tempo futuro. Também, apesar de reconhecermos que Deleuze está vinculado a um campo epistemológico nomeado como pós-estruturalismo, desafiamo-nos a uma postura crítica e aproximativa entre o devir minoritário, a teoria de campo de Bourdieu e o neoliberalismo para alcançarmos o objetivo proposto. Nesse sentido, o tempo é refletido a partir de quatro vertentes teóricas da comunicação: 1) o tempo da ação situada e a antecipação das ações do interlocutor a partir do Interecionismo Simbólico; 2) o tempo e a constituição comunicacional de sujeitos políticos a partir do Pragmatismo; 3) o tempo entre trabalho e lazer, bem como a legibilidade temporal das imagens dialéticas a partir da Teoria Crítica; e, por fim, 4) as temporalidades do devir minoritário a partir da obra de Deleuze (Marques; Martino, 2018). Dessa forma, propomos uma ênfase na quarta vertente nessa investigação e, conforme Marques e Martino (2018, p. 196), "o devir minoritário atualiza a virtualidade das relações fluidas e reversíveis, abertas à experimentação de subjetivações que escapam aos estados de dominação". Os estados de dominação podem, em certa medida, serem aproximados, em termos teóricos, daquilo que Bourdieu (1996) denomina como teoria de campo, já que "o campo é tanto um 'campo de forças', uma estrutura que constrange os agentes nele envolvidos, quanto um 'campo de lutas', em que os agentes atuam conforme suas posições [...], conservando ou transformando sua estrutura" (Thiry-Cherques, 2006, p. 35). Isto é: a experimentação de subjetividades está próxima aos processos de lutas que apostam em tensionar a estrutura que tende a conservar lógicas prévias de organização. Conforme Deleuze (2013, p. 222), “[...] acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos que escapem ao controle" para criar e atualizar mundos possíveis a partir da compreensão de que sujeitos são sujeitos políticos capazes de criar agenciamentos sobre a dinâmica específica da teoria de campo (Bourdieu, 1996), sobretudo no campo publicitário (Petermann, 2017). Em termos teóricos, Deleuze (2006, p. 267) afirma que "uma teoria é exatamente como uma caixa de ferramentas.[...] é preciso que funcione" buscando delimitar a função da teia de teorias articuladas para observar determinado fenômeno. Safatle, Júnior e Dunker (2021, p. 11) versam sobre a importância de acompanharmos as produções internacionais acerca da temática dos liberalismos e suas respectivas racionalidades, mas compreendendo as especificidades do território nacional de forma interdisciplinar. Os autores contornam o neoliberalismo como "uma forma de vida definida por uma política para a nomeação do mal-estar e por uma estratégia específica de intervenção com relação ao estatuto social do sofrimento", resultando em formas de subjetivação de sujeitos no/para o neoliberalismo catalisado por plataformas digitais de comunicação e de publicidade. Por isso, há uma "hipertrofia da ação individual" (Safatle; Júnior; Dunker, 2021, p. 48) por meio da narrativa comunicacional do capitalismo cool (Mcguigan, 2013) em busca da realização individual, da disciplina e da liberdade a ser conquistada por sujeitos nomeados como empresários de si mesmos (Han, 2021b, p. 14). O que está em jogo é a atualização do Outro social neoliberal que conduz a formação da subjetividade individual pautada na exploração e maximização extrema do corpo privado, na intensa individualização da responsabilidade em conquistar sucesso mensurável (codificado em forma de vasta quantidade de seguidores em redes sociais digitais, empreendedorismo escalonável no formato de startups e uma positividade delirante) e a meta compartilhada pela estrutura social em manter uma atualização constante de agoras. Safatle (2009, p. 44) argumenta que "podemos compreender a diferença lacaniana entre 'outro' e 'Outro'. Os 'outros' são fundamentalmente outros empíricos, que vejo diante de mim em todo o processo de interação social. Já o 'Outro' é o sistema estrutural de leis que organizam previamente a maneira como o 'outro' pode aparecer para mim. O primeiro diz respeito aos fenômenos, o segundo à estrutura". Conforme Han (2021b, p. 16), "no lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes". Entretanto, a partir da transformação de uma sociedade negativa e punitivista, entram na arena social palavras de ordem sintetizadas no slogan global estadunidense "Yes, we can", agregando uma forma plural à sua positividade em conquistar tudo o que desejar. Logo, enquanto a sociedade disciplinar descrita por Foucault pune, a sociedade do desempenho exige sempre mais dos seus sujeitos, produzindo sujeitos exaustos, depressivos e com afetos ligados ao fracasso por meio de um ideal de gozo ilimitado de alta performance que direciona o sujeito à própria destruição por meio do [im]pulso de morte (Han, 2021a). De forma complementar, Neckel e Neto (2022, p. 02) descrevem que o pacto social neoliberal, entendido como uma fase tardia do sistema capitalista, foi planejado desde 1940 e não é apenas uma forma econômica, mas um modo
de vida estruturado por meio de uma psicologia positiva, organizando "sujeitos que vivem como microempresas de si mesmos, buscando enfrentar a concorrência e atingir o sucesso e a visibilidade, produzindo a atenção que cada vez mais, com a entrada em cena das redes", colocando em pauta, de maneira interpelativa, as sedutoras narrativas meritocráticas na esfera social, cultural e econômica. De forma específica, Crocco (2019, p. 146) versa sobre as habilidades e capacidades profissionais que são incentivadas para todos os demais trabalhadores do futuro em discursos neoliberais comunicados por diretores e gerentes empresariais absorvidos do campo publicitário (Petermann, 2017); dentre elas estão a criatividade, a inovação, a flexibilidade e a autonomia. Contudo, o autor reflete criticamente acerca das condições de possibilidades do trabalho flexibilizado e precarizado vivenciado por esses profissionais que são vistos como exemplos de alta performance a serem seguidos por outros campos (Crocco, 2019). Ademais, há uma tendência nas pesquisas recentes sobre as relações entre trabalhadora/es do campo publicitário no neoliberalismo acerca dos afetos que mobilizam ações de transformação ou conservação das lógicas de trabalho no campo publicitário (Petermann, 2017). Custódio (2023) fala sobre ansiedade, medo e vergonha como afetos que "evidenciam a precarização do trabalho criativo" (p. 21); já Valente (2023, p. 177) sublinha que a ansiedade e o imediatismo organizam a rotina de trabalhadora/es no campo publicitário e "tira o tempo de etapas essenciais para o bom desenvolvimento dos projetos e a satisfação do profissional com o produto do seu labor". Por fim, Ferreira (2022, p. 280) apresenta, a partir de uma análise das contradições marxistas, afetos como "ansiedade, depressão, transtornos, pânicos e crises" relacionados às lógicas de produção do trabalho. Diante de diferentes afetos relacionados, indiretamente, a categoria tempo à luz neoliberal, é fundamental a emergência política de seres "em comum em cooperação" (Deleuze, 2013, p. 222), já que o devir minoritário "revela a produção da multiplicidade em ato, a invenção de um vir a ser autônomo, imprevisto, produtor de agenciamentos moleculares da multiplicidade" (Marques; Martino, 2018, p. 1995), não engendrados a partir do tempo acelerado que azeita o neoliberalismo. Por fim, este texto amplia as reflexões sobre o tempo como uma categoria importante para compreendermos fenômenos comunicacionais no tecido sociocultural. Um aspecto relevante a ser sublinhado é o que Marques e Martino (2018) refletem do tempo estar mais próximo de uma historicidade nas abordagens ou teorias da comunicação, como é o caso da História das Mídias, a partir de uma lógica evolucionista e linear. Partindo deste aspecto, o sentido do tempo se amplia para que seja possível compreendermos que todo e qualquer fenômeno comunicacional está inscrito num tempo singular; hoje, adjetivado como neoliberal no qual processos de subjetivação contornam o fenômeno do trabalho precário sintetizadas no slogan Yes, you can!