ABCIBER | Simpósios e Encontros, ABCIBER XVI - SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCIBER 2023

ISSN : 2175-2389
Colonialismo digital no rural brasileiro: a necessidade de uma reforma agrária também das tecnologias digitais
Kauã Arruda Wioppiold, Ane Carine Meurer

Última alteração: 2024-02-03

Resumo


As ações do capital sobre os territórios provocam um conjunto de distorções e fragmentações, ocasionando crises. Com a globalização ocorre a reconfiguração do sistema de dominação política do modo, atrelado a recentes tendências que resultam no aumento da exploração e do controle capitalista sobre o trabalho. (QUIJANO, 2002). Resulta-se, consequentemente, em novas reconfigurações do modo de produção capitalista que impactam diretamente os territórios.

As disputas em razão do processo de globalização provocam conflitos socioambientais, impactos de megas mineradoras, conflitos pela posse da terra, processos de desterritorialização de pessoas e saberes que impactam diversos povos, entre outras disputas. Para Fernandes “este é o sentido supremo da luta pelos territórios dos povos camponeses e indígenas. O capitalismo sempre apropriou e ou subalternizou outras relações sociais e seus territórios”. (FERNANDES, 2009, p. 13). Estamos, portanto, de acordo com o autor perante um ponto forte da luta territorial, da disputa territorial.

Atualmente, para Faustino e Lippold (2022), estamos diante ainda do velho colonialismo refletido a partir de novas tendências nas dinâmicas de dominação e exploração da força de trabalho, que estão intrínsecas às relações de poder com base nas tecnologias informacionais contemporâneas. Essas relações de poder são resultados do surgimento do monopólio digital, o qual grandes empresas do ramo da tecnologia estão se utilizando da alta capacidade de coletar dados para controlar diversos aspectos da vida humana. Isto resulta no objetivo geral do trabalho, de analisar os impactos do colonialismo digital sobre o campo e verificar as necessidades de pensar outras formas de utilização do uso das tecnologias vinculadas aos ideias políticos de reforma agrária.

Com o avanço da globalização ocorre a expansão da Internet e suas tecnologias, possibilitando um mundo da rapidez e da fluidez. Nesse aspecto, para Santos (2001), trata-se de uma fluidez virtual, consequência dos novos sistemas técnicos, especialmente os sistemas da informação. Essa fluidez potencial é utilizada por empresas e instituições hegemônicas, as quais se utilizam da técnica para potencializar e dinamizar um circuito de negócios.

As formas digitais de poder para KWET (2019) estão relacionados em três pilares, o Software, Hardware e conectividade de rede. Atualmente, a busca pelo controle destes três componentes ocasiona uma colonização das grandes empresas em busca do domínio sobre os territórios, resultando no que é denominado de Colonialismo Digital.

Ocorre a partir do colonialismo digital, uma expansão também do que é caracterizado de colonialismo de dados, que pode ser considerado um meio de negócios para Couldry e Mejias (2018), realizado pelas plataformas digitais a partir de meios tecnológicos que se utilizam do social para o capital, a partir de uma forma que rastreia, captura e classifica dados, gerando assim o valor. Esse processo ocasiona uma nova forma de explorar e maximizar o lucro sobre o trabalho, concentrada na exploração de uma nova forma de matéria-prima: os dados. Além de uma vigilância não consentida de populações inteiras. (FERREIRA, 2021); (SRNICEK, 2017).

Em suma, o colonialismo de dados age para difundir um sistema favorável de ampliação de mecanismos de poder através da modulação algorítmica, isso possibilita no que é denominado de capitalismo de dados e resulta em pré-condições para um novo estágio do capitalismo que ainda não se consegue ter a noção do real impacto sobre as sociedades. (GANDOLFI, 2021); (COULDRY & MEJIA, 2018).

Diante deste aspecto, Mozorov ressalta que “o modelo de capitalismo “dadocêntrico” adotado pelo Vale do Silício busca converter todos os aspectos da existência cotidiana em ativo rentável” (MOZOROV, 2018, p. 34). A acumulação primitiva de dados para Lippold e Faustino (2022, p. 58) reduz o chamado Sul global a mero território de mineração extrativista de dados da informação e a consumidores retardatários de tecnologia, que viabiliza essas novas formas de exploração, opressão e controle ideológico.

Ao modo que os dados se tornam matéria prima e geram valor e o lucro, os capitalistas de vigilância e seus mercados intensificam e ampliam os meios para captar estes recursos. Isto requer fluxos massivos de dados provenientes de diversas fontes e locais, impulsionados pela expansão da Internet, do setor de quantificação social, da logística, da Internet das Coisas e do uso crescente da inteligência artificial (FERREIRA, 2021). Assim, nota-se a semelhança com o colonialismo histórico. Como no passado, vemos a apropriação de recursos, a imposição de ideologias e a concentração corporativa de lucros como elementos fundamentais desse processo (COULDRY & MEJIAS, 2018).

A Ciência Geográfica no último período buscou analisar os impactos da globalização sobre os territórios. Nesse sentido, no momento que emergem novas formas de apropriação dos territórios pelo capital, surge para Duarte (2023) a necessidade de que “mapear estes arranjos e propor uma crítica deste capitalismo de vigilância faz parte da abertura de novos capítulos na agenda de pesquisa sobre a geografia histórica do capitalismo”. (DUARTE, 2023, p. 179). O momento atual do capitalismo, portanto, avança por meio da globalização e influência diversos aspectos do território.

Esse processo se expande também sobre o espaço rural - através do avanço das denominadas Big Techs, sobre a comunicação, educação, a agricultura digitalizada e diversas dimensões da vida. Ao mesmo tempo em que empresas consolidadas no ramo do agronegócio também investem massivamente para competir no mercado de coleta e manipulação de dados. Esse fator para Hui (2020) é a retenação de uma mentalidade colonial para um cinismo cego a outras possibilidades. Para o autor “É certo que a inteligência artificial terá impacto significativo em nossas sociedades e economias. (HUI, 2020, p. 78). Assim, novas formas de exploração geram ainda mais desigualdade no campo, com base em um problema histórico que é o monopólio da terra.

No caso do espaço rural brasileiro, a expansão do capital ocorre principalmente sobre a privatização da natureza e o monopólio da terra, reflexo de uma política colonial que nunca realizou reforma agrária. Esta dinâmica resulta em um espaço rural repleto de contradições e desigualdades. Por isso, torna-se necessário analisar como as grandes empresas do ramo da tecnologia estão influenciando sobre os assentamentos da reforma agrária e na luta pela democratização da terra, bem como verificar a possibilidade de pensar novas formas de tecnologias que contrapõe a forma perversa de avanço do capital sobre o campo brasileiro.

Diante da reivindicação pelo direito a acesso à terra, surge os assentamentos da reforma agrária que são formados a partir da desapropriação de latifúndios e distribuição da permissão do uso da terra. No Brasil essa política é realizada através do Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (INCRA). De acordo com o Painel de Assentamentos (INCRA, 2017), no país há 972.289 famílias assentadas em 9.374 assentamentos.

Os assentamentos da reforma agrária representam cotidianamente formas de resistências do campo brasileiro, ou seja, há de um lado grandes latifúndios atrelado a grandes empresas multinacionais que detém o domínio da tecnologia do campo e do outro, camponeses resistindo ao avanço do capital. No campo, seis multinacionais controlam no mundo 60% do mercado de sementes e 70% do mercado de insumos e agrotóxicos, entre as empresas estão a Syngenta, Bayer e Monsanto. (BRASIL DE FATO, 2018). Essas gigantes do ramo farmacêutico e do alimento detém grande parte do mercado global do agronegócio.

Diante da escolha dos governos em optar por não realizar políticas públicas de  expansão das infraestruturas digitais sobre o campo, as Big Techs bem como Amazon e Microsoft, além de empresas consolidadas no Agronegócio como 3Tentos, Bayer, Syngenta e Monsanto estão oferecendo aplicativos de celulares – que na maioria das vezes são gratuitos - para auxiliar agricultores e agricultoras a tomar decisões sobre todas as etapas do plantio, a partir da coleta e processamento de dados da terra (GRAIN, 2021). Consequentemente, as empresas também avançam para levar a conectividade ao campo, no vácuo ocasionado pela falta de políticas públicas. O avanço da conectividade do campo, portanto, está entrelaçado ao avanço do monopólio do capital.

Um dos exemplos do colonialismo digital sobre o campo, é a expansão do serviço de internet da Starlink, que vão desde a região Amazônica a áreas rurais e de assentamento da reforma agrária. Os portais de notícias do agronegócio consideram a Starlink como a empresa que tem “Um pé na terra e outro nos satélites” (AGFEED, 2023). Para além, Elon Musk já é considerado o “Rei da Internet no Campo” de acordo com o portal CompreRural (2023). Assim, o portal compara a consolidação da empresa, com a caracterização do Rei do Gado, proporcionando uma análise de que a Internet se torna uma das principais ferramentas para o progresso do espaço rural.

O monopólio digital que atinge as cidades, portanto, também está presente nas áreas rurais e consequentemente em áreas de assentamento, reforçando o que Kwet (2023) sintetizou sobre as empresas possuírem predominância das estruturas digitais. Isto acresce o que o autor descreve que:

hoje, está em curso uma nova forma de colonização corporativa. Em vez da conquista de terras, as grandes corporações tecnológicas estão colonizando a tecnologia digital. as seguintes funções são todas dominadas por um punhado de multinacionais dos EUA: motores de busca (Google); navegadores da web (Google Chrome); sistemas operacionais para smartphones e tablets (Google Android, Apple iOS); sistemas operacionais de desktop e laptop (Microsoft Windows); software de escritório (Microsoft Office, Google G Suite); infraestrutura e serviços em nuvem (Amazon, Microsoft, Google, IBM); plataformas de redes sociais (Facebook, Twitter); transporte (Uber, Lyft); redes de negócios (Microsoft LinkedIn); streaming de vídeo (Google Youtube, Netflix, hulu); e publicidade online (Google, Facebook) – entre outros. A GAFAM compreende agora as cinco empresas mais ricas do mundo, com uma capitalização de mercado combinada superior a 3 biliões de dólares. (KWET, 2019, p. 06)

Esse processo, é um dos exemplos que resulta para Kwet (2019) no que “está em curso hoje, de uma nova forma de colonização corporativa. Em vez da conquista de terras, as grandes corporações tecnológicas estão colonizando a tecnologia digital”. (KWET, 2019, p. 06). A união entre as Big Techs e as nações imperialistas para Duarte (2023) criam novas possibilidades, permitindo a ampliação da exploração do trabalho e novas estratégias geopolíticas que resultam em novas formas de dominação - principalmente através do uso e aprimoramento a partir da inteligência artificial.

Ao modo que os movimentos sociais possuem papel essencial na sociedade na luta pela soberania dos povos, torna-se fundamental que estes não ignorem o avanço do colonialismo digital sobre o campo. Para Hui (2020) demonstrar os limites do uso da inteligência artificial é algo que “possibilitará a concepção de novas ecologias políticas e de economias políticas da inteligência das máquinas”. (HUI, 2020, p. 139). Isto demonstra a emergência de aprofundar as análises e reflexões que permitam com que os movimentos sociais do campo compreendam a necessidade de que esta pauta esteja no centro dos debates. O atual modelo de desenvolvimento do campo passa também pela soberania digital e a necessidade de pensar outras formas de utilizar as tecnologias. Ou seja, é necessário refletir sobre a necessidade de uma reforma agrária também sobre as tecnologias digitais.


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