Última alteração: 2023-12-05
Resumo
Pretendo aqui tecer algumas reflexões sobre as redes sociais como espaço de experimentação artística num território de intersecção entre as artes visuais e a literatura, tendo como base trabalhos que realizei recentemente, em publicações de artista ou em outras mídias que tenham, em algum momento, a publicação como desdobramento: o livro “Alime News”[1], uma narrativa de viagem em primeira pessoa na rede social Facebook, originalmente lançado em cores na plataforma digital Issuu (2021), depois tendo seu design refeito em preto e branco para uma tiragem impressa (atualmente em estágio de finalização), e também a escrita de letras de música para o projeto de performance sonora Banda de Garotas Instantâneas[2] (2017-2023), posteriormente compiladas e publicadas no impresso risográfico “Gracyzine”. Esses projetos têm em comum sua origem em fragmentos coletados e deslocados de uma escrita cotidiana nas redes sociais, em formatos intermediários entre o diário, o conto, a carta, o ativismo digital, dentre outros.
Estes trabalhos foram constituídos no campo das poéticas visuais, e articulam imagens e escritas caracterizadas pela reorganização de rastros midiáticos armazenados nas redes como ecos de escritas diárias, ou diários digitais interativos, assim como conversas fragmentadas, assíncronas, por escrito ou mídias híbridas.
Tais rastros digitais necessitam ser escavados em direção ao passado, na barra de rolagem infinita como camadas em um palimpsesto digital, e permitem que essa escrita em rede, onde um texto esbarra ou complementa o outro, possa se tornar matéria prima para a edição de produções artísticas.
Essas escritas em público, em primeira pessoa, remetem ao que Paula Sibilia (2008) chamou de “diários éxtimos”, para se referir à subversão do regime de visibilidade do texto íntimo nas plataformas contemporâneas, e também ao que Boris Groys (2018) chamou de “autopoética” e “produção do eu público”, para aproximar esse tipo de escrita pública de si com algumas operações realizadas por artistas ao longo da história da arte, sobretudo na arte pop norte americana.
Essa utilização dos vestígios da linguagem mediada pelas redes como blocos de construção ou esboços, e a percepção de certos grupos de reincidências de temas ou características específicas de fragmentos de textos traz a possibilidade de perceber certas presenças quando adquirem massa crítica a ponto de adquirir contorno, de modo semelhante ao relatado por Lourenço Mutarelli em palestra realizada em 2015 para o Itaú Cultural, quase que à revelia da intenção ou vontade do autor, ter já escrito um livro:
eu achava que literatura era uma coisa sagrada que não era pra mim, mas um dia aconteceu... uma vez a Lu, a minha mulher, viajou, e eu fiquei sozinho lá, ela viajou com o meu filho e eu escrevi 'O cheiro do ralo', em 5 dias ali. E a Lu, a gente tá junto há muito tempo né, e quando a Lu voltou de viagem eu falei pra ela "puxa, eu fiz um negócio que eu acho que é um livro.
De modo semelhante, Vincent Van Gogh (CHIPP, 1996) também relatou a experiência de trabalhar nesse estado desconectado do peso da responsabilidade: “as emoções são, às vezes, tão fortes que trabalho sem consciência de estar trabalhando... e as pinceladas acodem com uma sequência e coerência idênticas às de palavras numa fala ou numa carta.” Essa naturalidade ao fluir, que o artista aproxima à oralidade, que deixa rastros gráficos ou textuais e que apenas depois do acontecimento são racionalizados, é como uma suspensão temporária da tensão de precisar acertar o gesto, facilitando o fluxo.
Ainda sobre as estratégias para aliviar o peso da escrita no momento presente, Slavoj Zizek, citado por Sonke Ahrens (2017), disse em uma entrevista que não seria capaz de escrever uma única frase se não começasse por se convencer de que estava apenas escrevendo algumas ideias para si mesmo e que talvez pudesse transformá-las em algo publicável mais tarde.
Esse salto que evita a etapa de intencionar escrever um livro, avançando instantaneamente para o momento de dar-se conta que ele já foi escrito, permite que o gesto artístico se dê no movimento de curadoria e edição do material já produzido pela convivência através de palavras em rede, num gesto análogo a quem busca um esboço de desenho em um caderno de estudos a fim de retrabalhar em outro projeto. As redes, dentre tantas possibilidades, também oferecem um repositório de ideias e experimentação com a língua, numa escrita marcada pela oralidade e informalidade, atravessando circuitos afetivos que agregam públicos distintos.
Seja um diário de viagem (Alime News) ou um livro de poemas (Gracyzine), esses livros potenciais vão se acumulando no depósito das narrativas em primeira pessoa nesse espaço de escritas e leituras, onde é possível fabular em conjunto a respeito do cotidiano.
Esse tipo de trabalho (acúmulo de operações reincidentes que fortalecem a instituição de uma prática ou ponto de vista) me parece como um correlato nas artes - ou na literatura - do método de escrita científica relatado por Sönke Ahrens no seu livro a respeito do método de escrita zettelkasten[3] desenvolvido por Niklas Luhmann.
A esse respeito, são pertinentes também as proposições de Roland Barthes em “A preparação do romance” para organizar escritas fragmentárias esboçadas em direção a um texto mais longo.
Alime News partiu de uma proposição para uma publicação digital agregando elementos narrativos gráficos (desenhos, fotografias e gravuras) a um diário de viagem realizado entre agosto de 2019 e março de 2020 publicado nas redes socais, período durante o qual realizei meu doutorado sanduíche de pesquisa em Artes Visuais na cidade de Bruxelas. Foi construído no formato de pequenos contos, micro-narrativas de estranhamentos culturais do cotidiano, a fim de traduzir para meus amigos (espécie de correspondentes pós-modernos através de redes como o Facebook) como é ser artista, brasileira e estar vendo pela primeira vez e sendo atravessada por um modo de vida radicalmente diferente, com toda a complexidade afetiva própria a uma brasileira temporariamente expatriada, com poucas referências para compreender o lugar.
Agreguei ao texto elementos visuais como fotos realizadas em minhas derivas pela cidade, eventuais comentários de contatos da minha rede que ampliavam a conversa em movimentos inesperados, como a vez em que escrevemos juntos uma letra de música parodiando uma situação que eu estava vivendo, e desenhos do meu diário gráfico – por exemplo a sequência narrativa por imagens do período mais intenso do inverno, quando passamos meses praticamente sem ver o sol, e embarquei em uma exploração melancólica de lembranças mescladas a devaneios sombrios.
Esse texto que se articula como uma conversa entre várias pessoas no mesmo lugar pode ser enquadrado no que diz Henry Jenkins (2006) a respeito de inteligência coletiva: “a capacidade de comunidades virtuais aproveitarem a expertise combinada de seus membros. Aquilo que não podemos saber ou realizar individualmente, agora podemos conseguir coletivamente”. Um texto escrito a muitas mãos, espontaneamente, por quem se sente convocado a participar, por quanto tempo e intensidade desejar.
Esse trabalho teve início com uma brincadeira: ao desembarcar do outro lado do oceano Atlântico, no primeiro intervalo possível comecei a enviar relatos do que estava percebendo ao meu redor, para acalmar ou divertir os amigos, dando “notícias” (news) parodiando os noticiários da televisão. Mantive o hábito até o final da minha estadia, quando percebi que, juntando as publicações a esse respeito havia escrito um livro. A partir dos textos também fiz desenhos especificamente para esse livro, como a capa, um autorretrato citando o “Man in a Bowler Hat”, pintura de René Magritte, - pintor que me acompanhou indiretamente ao longo de minha estadia no país, por conta da paleta de cores da cidade ser a mesma de seus quadros. Essas anotações a respeito de paletas cromáticas do cotidiano em conversa com a história da arte também compõem a publicação, a fim de tornar visível minha experiência sensorial no lugar.
Busco reelaborar escritas individuais em redes coletivas, partindo de um lugar de micro-narrativas do cotidiano por uma perspectiva crítica feminista para o desdobramento em publicações, peças sonoras, performances e vídeos, a fim de dar conta dessas formas de inscrever no mundo um lugar que é ao mesmo tempo individual e plural, de onde minha experiência se costura e se avizinha, perpassada também pela poesia brasileira feminista contemporânea, que nasce tanto na literatura quanto nos bailes funk.
Com esses trabalhos busco um olhar um pouco mais lento sobre essas construções, fazer perdurar no tempo palavras destinadas ao desaparecimento.
Palavras-chave
Artes visuais; publicações de artista; redes sociais; arte digital.
Referências
AHRENS, Sönke. The art of taking smart notes: one simple technique to boost writing, learning and thinking - for students, academics and nonfiction book writers. Scotts Valley: CreateSpace Independent Publishing Platform, 2017.
ALŸS, Francis. Numa dada situação. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
BARTHES, Roland. A preparação do romance vol. I – Da vida à obra. Notas de cursos e seminários no Collège de France, 1978-1979. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FREITAS, Angelica. O útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
GROYS, Boris. Going public. Berlim: Sternberg Press, 2010.
CHIPP, H. B.. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and new medias collide. New York: New York University Press, 2006.
MUTARELLI, Lourenço. Para Além da Adaptação: Diálogos entre Quadrinhos e Outras Formas de Expressão Artística (Itaú Cultural 2015). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=81CufJ_Ty74&ab_channel=Ita%C3%BACultural
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 2008.
[1] A publicação foi viabilizada pelo concurso de auxílio emergencial da lei Aldir Blanc, pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, na categoria de literatura, e está disponível para acesso em seu formato digital no seguinte endereço: https://issuu.com/aliceporto/docs/alime_news_final_23_dezembro_hi_res_2 .
[2] O projeto é pluriautoral, colaborativo e dinâmico, tendo várias manifestações e formações, com diversas artistas, dentre as quais, além de mim: Marion Velasco, Andressa Cantergiani, Mariana Kircher, Carolina Grimm.
[3] Palavra que tem origem no alemão e significa “caixa de anotações”, designa um método de pesquisa onde pequenas anotações contendo ideias que se sustentam sozinhas são organizadas entre si por um sistema de conexões e relações.