Última alteração: 2023-12-05
Resumo
Por se tratar de uma noção que indica a extrapolação dos limites do razoável, e, ainda assim, requerer algum grau de inteligibilidade para ser entendida como tal, o absurdo habita a fronteira entre o imaginável e o inimaginável. Ele chega para tensionar ou demarcar o limítrofe do que é apto a ser caracterizado como aceito, que muitas vezes se encontra com o senso comum e a norma de acordo com os saberes e discursos dispostos em determinado tempo espaço. Ainda pode ser atravessado pelas singularidades e histórias de vida que compõem determinadas perspectivas de mundo, de modo que uma gama de bordas se encontram e desencontram para desenhar em que cruzamentos se dá esta passagem pontual: do que pode ser aceito, para o absurdo. Assim, o absurdo pode ser apreendido como uma narrativa – ou travessia - em disputa.
A discussão aqui apresentada é fruto de uma pesquisa em andamento suscitada pelos modos inéditos de experiência com a factualidade provocados pela atuação das tecnologias de informação e comunicação (TIC) no Brasil nas últimas eleições gerais, em uma análise do absurdo como dispositivo de inimizade agenciado pela extrema direita atualmente opositora ao governo. Tendo em vista que a guinada para o extremismo da direita e para o fascismo é um fenômeno global, optamos por analisar o contexto do Brasil pela relação íntima traçada entre o conservadorismo, autoritarismo e disseminação de certa narrativa sobre o absurdo com enfoque também na condição de país ex-colônia que aderiu a estratégias imperialistas neste processo, buscando demonstrar como estes fatores se ajuntam na produção deste dispositivo em relação com diversos tipos de colonização.
Brasil é um país com memória em disputa, território extenso e população diversa, cujo projeto histórico de desinvestimento na educação faz parte do exercício da política, e cuja distribuição de renda é discrepante. Aderimos como marco para a articulação do dispositivo do absurdo o golpe de 2016 contra a então presidenta Dilma Roussef, de quando discursos de teor moral e conservador passam a atuar mais fortemente no cenário político e social. Este processo se intensificou com a vitória do candidato Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. O período de gestão do partido de extrema direita PSL foi caracterizado por uma conjuntura catastrófica marcada pela intensificação de discursos de ódio, péssima gestão e relativização da pandemia, produção de morte em decorrência desta relativização e também assassinato de populações indígenas em prol do garimpo ilegal, dentre outras inúmeras problemáticas. Agora, com o Partido dos Trabalhadores novamente no mandato, se faz possível vislumbrar outros horizontes, mas as estratégias políticas da extrema direita ainda surtem efeitos.
Objetivamos explicitar de que modos o absurdo foi agenciado como um dispositivo político contemporâneo pela extrema direita através de narrativas sensacionalistas e acusatórias intolerantes por meio da inserção das plataformas digitais de maneira programada no tecido social do Brasil. Para realizar a análise sobre o absurdo como ferramenta partidária e discursiva, a pesquisa se debruça no fenômeno das fake news. As notícias falsas foram elegidas para análise porque tiveram importância decisiva nas duas últimas eleições para presidência e versam sobre a temática do absurdo de maneira complexa, sendo capaz de criar narrativas junto a diversos grupos sociais de modo efervescente ao se constituir como um saber coletivo cujo embasamento não é factual, e atuando como dispositivos instrumentalizados de produção de realidades.
A construção histórica de uma série de opressões que compõem uma moral acionada politicamente de maneira extrema e intolerante na atualidade no Brasil e o processo de manutenção desta moral tendem a situar as pessoas de maneira binária: as cisões entre brancos x não-brancos, homem x mulher, cisheteronorma x LGBT+, atuam como propulsoras da cisão moral x desvio. Esta cisão fundadora investe na normalização da intolerância fente à alteridade e se ajunta à ferida narcísica da branquitude para compor pactos de amizade e inimizade tácitos que operam na consituição da identidade nacional (BENTO, 2002). Este cenário se complexifica em uma atualidade em que o investimento na produção de subjetividade característico das tecnologias digitais se manifesta na transformação da vida cotidiana para viabilizar as relações sociotecnicas (MEJIAS E COULDRY, 2019; RICAURTE, 2019), de modo que dar um sentido para a experiência de modo comunitário é atravessado por elementos múltiplos, ao mesmo tempo em que a busca pelo pertencimento se intensifica. Conforme Paula Sibilia afirma, muitas vezes o que importa não é o que disseminamos nas redes, mas a interação em si (SIBILIA, 2008). Tendo isso em vista, se o absurdo como política de inimizade habita as fronteiras do imaginário coletivo brasileiro desde a colonização, ele se torna estratégia político partidária no momento em que é instrumentalizado como racionalidade algoritmica.
Letícia Cesarino (2022) propõe uma explicação cibernética para apreensão de fenômenos relacionados a sistemas de digitalização da verdade e da política. Tendo como base de análise o contexto pandêmico do governo de Jair Bolsonaro, a autora mostra que esta explicação não se refere apenas à análise da correlação entre as tecnologias digitais e modos contemporâneos de exercer a política, mas ao jeito não linear e com multiplicidade de agentes para apreender estas interferências. Cesarino explica que em panoramas políticos em desequilíbrio os sistemas sociais buscam espontaneamente recuperar o equilíbrio entre identidade e diferença, o que pode levar a bifurcações graves, como ocorreu com o fascismo histórico. Sobre o populismo, escreve que
O colapso de contextos entre público e privado leva a uma bifurcação do tipo amigo-inimigo em que o campo público da política é englobado pela lógica privada da comunidade de destino compartilhadas apenas por aqueles reconhecidos como “amigos”, e que são vistas como fonte da vida, do valor, da autenticidade e da verdade: o povo, a nação, a família, a igreja etc.(Cesarino, 2022, p. 77).
Pode ser possível afirmar que as fakenews passam por um processo desleal em diversas camadas: primeiro no seu processo de criação, que inventa acontecimentos através de tecnologias digitais de maneira programada, se colocando com um teor jornalístico quando se trata de um fenômeno de desinformação midiático. Em segundo lugar, na escolha do tema da notícia a partir de um estudo do imaginário em um contexto espaço temporal específico, visando atingir setores da população através de temas apelativos relacionados à reiteração de um discurso moral. E, ainda, no que se refere à manutenção dos seus efeitos, com interesses particulares pontuais políticos e financeiros.
Ao explicitar uma perspectiva analítica do panorama político em voga que leve em consideração as questões supracitadas, objetivamos dispor ferramentas para enriquecer o debate político em sua articulação com a atuação das plataformas digitais, assim como provocar inquietações sobre possíveis estratégias de combate à extrema direita e ao protofascismo. Mostrar os modos factuais pelos quais a extrema direita historicamente aciona dispositivos com interesses próprios e as questões éticas implicadas nestas estratégias se apresenta como uma possibilidade para a apreensão das conjunturas e imaginários sempre diferentes nos quais as tecnologias digitais se acoplam e desenvolvem. Acreditamos que uma óptica historicizada que relacione as TIC com o imaginário binário e avesso à alteridade característico da colonialidade e do fascismo histórico possa elucidar como o Brasil enquanto país colonizado fica vulnerável a estratégias de desinformação que se fundamentam em um aspecto moral. Situar a problematização em termos do que intitulamos dispositivo do absurdo tem como objetivo fundamental colocar em evidência maneiras de fazer coletivo: se há uma moral forjada na inimizade que tem como princípio o esgotamento da diferença e da alteridade, em última instância o dispositivo político partidário do absurdo pretende esgotar um dos campos expoentes de onde o possível se insere, que é o lugar comum, seja da possibilidade de fazer coletivo, seja do fato. Desta maneira, se faz importante a manutenção da atenção em rede para que o absurdo não se torne o lugar comum por excelência na ausência de outros.
Perspectivas decoloniais podem proporcionar algumas pistas de fuga deste cenário para a invenção de possibilidades dissidentes, questão que buscaremos aprofundar no artigo. Apostamos no absurdo como participante ativo na prospecção de futuros. Enquanto ponte para o imaginável, pode se encontrar com modos de experienciar a alteridade pautados em outras referências. Conceituar o absurdo na atualidade implica em perspectivas sobre o que é aceitável e desejável no que se refere a políticas de comuns e suas correlacionadas técnicas.
Palavras-chave
Desinformação; Pós-verdade; Protofascismo; Eleições no Brasil; Dispositivo do Absurdo.
REFERÊNCIAS
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva; PIZA, Edith. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. p. 01- 30.
CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
MEJÍAS, Ulisses; COULDRY, Nick. (2019, mai). Colonialismo de datos: repensando la relación de los datos masivos con el sujeto contemporáneo. Virtualis, 10 (18), 78-97. Disponível em: https://www.revistavirtualis.mx/index.php/virtualis/article/view/289/290 . Acesso em: 10 nov. 2023.
RICAURTE, Paola. (2019, mai). Data Epistemologies, The Coloniality of Power, and Resistance. Television & New Media, 20 (4), 350-365. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1527476419831640 . Acesso em: 10 nov. 2023.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.