Apropriações do podcasting pela cultura hip-hop: evocação de memórias no Gringos Podcast
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1. | Título | Título do documento | Apropriações do podcasting pela cultura hip-hop: evocação de memórias no Gringos Podcast |
2. | Autor | Nome do Autor, afiliação institucional, país | João Pedro Pacheco Van Der Sand; UFSM - Universidade Federal de Santa Maria |
3. | Assunto | Área(s) do Conhecimento | |
3. | Assunto | Palavras-chave(s) | |
4. | Descrição | Resumo | O artigo apresenta resultados preliminares de minha tese de doutorado[1], na qual analiso, por meio da etnografia digital, as práticas comunicativas de sujeitos vinculados à cultura hip-hop, através do Gringos Podcast. A proposta do estudo é analisar de que maneira a cultura hip-hop se apropria da tecnologia – e do podcast enquanto processo midiático - para seus propósitos culturais e comunicativos. Um dos principais achados da pesquisa diz respeito à evocação de memórias nos episódios do podcast, ocorrência que relaciono ao conceito de memória coletiva (POLLAK, 1989; HALBWACHS, 1990) e às “artes de lembrar” (CERTEAU, 1994). A partir dessas noções, argumento que o podcast vem sendo apropriado como instrumento capaz de produzir laços sociais e movimentos de resistência por meio da evocação de memórias. Este artigo está estruturado em três partes. Na primeira apresento o Gringos Podcast, um programa transmitido no YouTube a partir de uma loja de discos no centro de São Paulo profundamente identificada com a “Black Music” e a cultura hip-hop. Em um segundo momento são abordados conceitos como memória coletiva e as artes de lembrar. Por fim, relaciono alguns achados empíricos à base teórica acionada. O Gringos se encaixa em uma categoria comumente chamada de videocast (podcasts de entrevistas transmitidos em vídeo ao vivo), com a diferença de que no entorno da mesa ao redor da qual convidados e hosts dialogam, existem prateleiras cheias de produtos. O podcast é gravado dentro de uma loja de discos, e daí provém o seu nome, trata-se da Gringos Records, estabelecimento que funciona há mais de 20 anos no Centro Comercial Presidente, também conhecido como Galeria do Reggae, no centro de São Paulo. Como a loja tem tradição na cidade de São Paulo (um polo da cultura hip-hop no Brasil), muitos de seus frequentadores são figuras notórias do movimento hip-hop. DJs e MCs circulam no espaço, tanto para comprar discos quanto para distribuir, divulgar e vender seu próprio trabalho. Assim, os produtores do podcast têm facilidade de acesso a essas pessoas para convidá-las a participar dos episódios. Figura 1: composição do cenário do Gringos Podcast.
Fonte: captura de tela no canal Gringos Podcast. “No ar” desde o dia 4 de fevereiro de 2021, o Gringos contabiliza, na data de produção deste texto, 283 episódios e 35,1 mil inscritos. Durante as transmissões pude observar que a estrutura das entrevistas privilegia um certo tipo de discurso, que torna-se recorrente em seus episódios: a evocação de memórias e histórias de vida relacionados ao hip-hop. Um primeiro conceito, e talvez o mais importante deles, para refletir sobre o tema em questão, é o de memória coletiva. A noção de memória, até a década de 1920, era objeto um de pesquisa restrito à psicologia e à filosofia. Foi com o sociólogo Maurice Halbwachs que a sociologia passou a se ocupar do tema, e é proposição dele a noção de memória coletiva que é tão cara a este artigo. A palavra memória remete a lembrança e ao ato de lembrar, não se pode lembrar de qualquer coisa da qual não se tenha memória. Entende-se, portanto, que a memória é uma operação individual, voluntária ou não. Uma das contribuições de Halbwachs, neste sentido, é tratar a memória como uma operação coletiva. Para o autor, a própria identidade de uma pessoa se define pelas lembranças confrontadas e compartilhadas que ela e outras pessoas têm sobre ela mesma. No mesmo sentido, a formação de memórias está intimamente ligada ao pertencimento em grupos. Quanto mais unido um grupo permanece, tanto mais tempo remanescerão suas memórias junto a seus integrantes. Neste sentido, quando um indivíduo rompe laços e se afasta de um grupo, tende a lembrar cada vez menos dos momentos vividos junto ao mesmo. À medida que novas experiências vão sendo vividas e o laço afetivo de pertencimento vai se enfraquecendo, as memórias sobre este grupo vão se perdendo. Entende-se, portanto, que a memória coletiva funciona como uma referência de pertencimento (ou distanciamento) aos grupos ou comunidades com os quais temos relação durante a vida. Uma vez que procuro refletir sobre a evocação de memórias em um ambiente midiático fortemente ligado à cultura hip-hop, este conceito torna-se central. Comparando as concepções sobre memória de Halbwachs e do austríaco Michael Pollak (outro proeminente investigador do tema, inspirado pelo primeiro), Rios (2013) ressalta também a contribuição da memória no processo de formação de identidade. Constituída por três elementos principais: acontecimentos, lugares e pessoas, a memória não é fundamental apenas para um senso de identificação entre um grupo, mas para a diferenciação dele em relação aos demais. A memória coletiva ajuda a definir quem somos nós, e quem são os outros. Embora concorde com Halbwachs em diversos aspectos, Pollak (1989) tem uma perspectiva um pouco diferente sobre a memória no que diz respeito ao potencial de agência do sujeito. A perspectiva do austríaco coloca a memória como algo em disputa. Ainda que sujeita a determinados enquadramentos sociais, a memória individual, quando carregada de contrariedades em relação a certa memória coletiva, tem um potencial de ruptura. Para melhor ilustrar essas possíveis disputas em torno da memória, Pollak (1992) propõe a noção de memória oficial em oposição às memórias subterrâneas. As segundas seriam as memórias “proibidas”, que para existir precisam resistir aos esqucimento. “São elas as memórias dos grupos marginalizados, das minorias políticas, dos segmentos mais pobres, dos movimentos sociais, etc”. O hip-hop é um movimento cultural de origem diaspórica, cultivado por imigrantes e descendentes de pessoas escravizadas. A despeito de sucessivas tentativas de apagamento (Herschmann, 2000), hoje o hip-hop está representado entre as mais lucrativas expressões do entretenimento (séries, filmes, artes visuais, dança e, é claro, a música). Entretanto, percebemos que o movimento não se vê livre de preconceito, disputa e apropriação cultural. É justamente por isso que a perspectiva de Pollak e suas “memórias subterrâneas” fazem tanto sentido aqui. A memória em disputa também é abordada por Michael De Certeau. O autor pensa de forma consonante com as abordagens de Pollak e Walbwachs, utilizando-se também da noção de memória coletiva. Em “A Invenção do Cotidiano”, discorre sobre relações de poder e dominação e o lugar de certas “astúcias” próprias das práticas cotidianas de grupos desfavorecidos. Certeau postula que a memória, no cotidiano, tem um potencial transgressor e transformador, serve a um repertório de táticas. Em uma operação que envolve força, espaço, tempo e efeitos, o autor diz ser possível “aproveitar a ocasião e fazer da memória o meio de transformar os lugares” (CERTEAU, 1994, p.162). Dialogando com a definição compartilhada por Pollak e Halbwachs da memória como “uma construção do passado realizada no presente” (RIOS, 2013, p. 8) Certeau entende a memória como potência de intervenção no presente como uma tática que é própria do polo mais fraco nas lutas de poder, e assim opera por seu caráter de mobilidade e alteração. Durante nossa experiência acompanhando o Gringos Podcast, começamos a perceber que a estrutura das entrevistas transmitidas convidava e abria espaço para momentos de rememoração. Os convidados são apresentados a partir de suas ligações com os quatro elementos da cultura hip-hop: break, grafite, DJ e MC. Quando Erick Jay pergunta ao convidado as manifestações artísticas do hip-hop que ele já exercitou, é comum que isso dê início a um exercício de memória, já que vários dos participantes do programa já transitaram entre mais de uma dessas modalidades artísticas. Além disso, já na metade final de cada transmissão, o anfitrião pergunta quais foram os melhores e os piores momentos pelos quais o convidado já passou em sua carreira. Embora Ney tenha nos revelado que as entrevistas prescindem de roteiro, constatamos as citadas recorrências. São justamente essas perguntas que convidam os entrevistados a evocar histórias do passado. Pensando que a memória coletiva é determinante para a definição de identidades, entendemos o trabalho do podcast como, também, forma de resistência. Temos visto circular na cena hip-hop atual críticas sobre os novos discursos que são entoados nas músicas de rap. Há um setor do movimento que se preocupa com substituição de certos temas como a coletividade, luta racial e política, por letras voltadas a sexualidade e ostentação material, sem profundidade política. Lembrar de épocas passadas do hip-hop durante as entrevistas do podcast parece um movimento que procura resgatar um certo discurso frente à massificação da cultura hip-hop, sua iminente cooptação pela grande indústria do entretenimento e o consequente esvaziamento de sua ideologia. Este trabalho de reforço e preservação da memória remete às contribuições de Certeau e Pollak, demonstrando como as lembranças de indivíduos específicos podem funcionar como astúcias capazes de agregar forças em uma luta que passa pelo pertencimento. Além disso, o trabalho de campo (especialmente por meio de entrevistas em profundidade), revela que os produtores do podcast, seus ouvintes e uma parte da imprensa alternativa voltada ao hip-hop reconhecem nesta mídia o potencial de evocação e preservação da memória da cultura hip-hop.
Referências
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1994. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HERSCHMANN, M. O Funk e o Hip-Hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ. 2000. POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. v.2 n.3. Rio de Janeiro. 1989 p. 3-15. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941 POLLAK, M. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. v5, n.10. Rio de Janeiro. 1992. p.200-215. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278 RIOS, F. “Memória coletiva e lembranças individuais a partir das perspectivas de Maurice Halbwachs, Michael Pollak e Beatriz Sarlo”. In: Revista Intratextos. Vol.5, no.1. 2013 p. 1-22. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/intratextos.2013.7102. VAN DER SAND, J. Reagindo ao hip-hop no youtube: análise etnográfica sobre os vídeos de reação do movimento hip-hop. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, 2021. [1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 |
5. | Editora | Editora, localização | |
6. | Contribuidor | Patrocínio | Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) |
7. | Data | (YYYY-MM-DD) | 2023-12-05 |
8. | Tipo | Situação & gênero | Documento avaliado pelos pares |
8. | Tipo | Tipo | |
9. | Formato | Formato do Documento | |
10. | Identificador | Identificador Universal Único (URI) | https://abciber.org.br/simposios/index.php/abciber/abciber16/paper/view/2085 |
11. | Fonte | Título da Revista/conferência; V. N. ano | Simpósio Nacional da ABCiber (edições 2023, 2022, 2021, 2020, 2018); ABCIBER XVI - SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCIBER 2023 |
12. | Idioma | Português=pt | pt |
13. | Relacionamento | Docs. Sups. | |
14. | Cobertura | Localização geográfica, cronológica, amostra (gênero, idade, etc.) | |
15. | Direitos | Direito autoral e permissões | Autores que submetem a esta conferência concordam com os seguintes termos: a) Autores mantém os direitos autorais sobre o trabalho, permitindo à conferência colocá-lo sob uma licença Licença Creative Commons Attribution, que permite livremente a outros acessar, usar e compartilhar o trabalho com o crédito de autoria e apresentação inicial nesta conferência. b) Autores podem abrir mão dos termos da licença CC e definir contratos adicionais para a distribuição não-exclusiva e subseqüente publicação deste trabalho (ex.: publicar uma versão atualizada em um periódico, disponibilizar em repositório institucional, ou publicá-lo em livro), com o crédito de autoria e apresentação inicial nesta conferência. c) Além disso, autores são incentivados a publicar e compartilhar seus trabalhos online (ex.: em repositório institucional ou em sua página pessoal) a qualquer momento antes e depois da conferência. |