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ISSN : 2175-2389
Entre o ideal e a realidade: desafios de se trabalhar desinformação em sala de aula à luz da BNCC
Diego Sebastião de Deus

Última alteração: 2024-07-02

Resumo


Desde 2018, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento referência para a elaboração de diretrizes pedagógicas em escolas brasileiras – trata fake news como tema de interesse da disciplina de Língua Portuguesa; mais precisamente no chamado campo jornalístico-midiático. O campo é caracterizado pela compreensão da circulação de discursos e textos na mídia informativa como um todo, incluindo mídia impressa, televisiva, radiofônica e digital, e pelo discurso publicitário (Brasil, 2018). Especialmente no ensino médio, a BNCC e o campo focam no desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o uso das mídias e consumo de informação por parte dos alunos, de modo a enxergar na disciplina de Língua Portuguesa um local potente para estimular a interpretação crítica de textos, narrativas, imagens e diferentes contextos (Brasil, 2018), caracterizando práticas de educação midiática. Em 2023, uma pesquisa realizada pelo Instituto Palavra Aberta com professores da educação básica da rede pública brasileira, mostrou que 85% dos professores utilizam mídias com frequências em sala de aula. Além disso, 97% as utilizam para relacionar o tema curricular com um acontecimento atual ou para detalhar temas e conceitos específicos das respectivas disciplinas. Todavia, uma das conclusões do estudo foi que o uso de mídias pelos educadores não significa que estejam implementando práticas voltadas à educação midiática. Além disso, um levantamento realizado pela agência Lupa, em 2024, revelou que, nos currículos pedagógicos do ensino médio dos 27 estados brasileiros mais o Distrito Federal, foram criadas 746 novas disciplinas, porém, apenas 34 abordam educação midiática e desinformação. Conforme a agência, o dado é preocupante, já que um dos objetivos da reforma é justamente tornar o ensino mais relevante para o contexto atual, onde, entre outras questões, a desinformação aparece como emergência. O presente trabalho objetiva saber quais possíveis dificuldades encontradas por professores de Língua Portuguesa em trabalhar o tema desinformação em sala de aula, a partir das diretrizes da BNCC. Foram realizadas entrevistas em profundidade com três docentes responsáveis pelo ensino médio de uma escola pública situada na cidade de Botelhos, município com cerca de 15 mil habitantes, no sul de Minas Gerais. Os resultados fazem parte da fase exploratória da pesquisa de mestrado em andamento intitulada “Literacia (trans) midiática e desinformação: abordagem da crise epistêmica no ensino médio de uma escola pública”. Consideramos relevante tal diagnóstico, sobretudo, por notar que as diretrizes da BNCC são um tanto universais, o que discrmina especificidades locais, culturais e sociais de diferentes realidades no Brasil. Ao mesmo tempo, reconhece-se que a BNCC do ensino médio orienta que as escolas tenham autonomia para adequarem e elaborarem os próprios currículos pedagógicos conforme suas necessidades. O conceito de desinformação que utilizamos para balizar a definição do fenômeno no presente artigo, parte da concepção de Consentino (2020). O autor compreende que o termo possui duas acepções na contemporaneidade. A primeira delas diz respeito às sofisticadas técnicas de produção de informações falsas, tendo uma dimensão estratégica e intencional de falsidade. A segunda se refere aos efeitos de tais ações, que geram cenários de caos, confusão e dúvida, capazes de induzir a formação de opiniões e, por consequência, moldar ações sociais. Ressalta-se que a expressão utilizada pela BNCC é fake news que, na visão de Allcott e Gentzkow (2017), se relaciona especificamente às informações que são sabidamente e totalmente falsas, compartilhadas e objetivadas a um fim. A BNCC não traz precisamente uma definição de fake news e/ou seus distanciamentos e aproximações de outros termos congêneres. Portanto, assumimos como sinônimos desinformação e fake news para tratar exclusivamente da abordagem empregada pelo currículo. Reconhecemos que as informações falsas são apenas uma engrenagem de um fenômeno mais amplo e complexo relacionado à desinformação (Santaella, 2019). Concomitantemente, tomamos a definição de Hobbs e Jensen (2010) para educação midiática que, na visão das autoras, reivindica um questionamento ativo e pensamento crítico a respeito das mensagens que cria-se e recebe-se; trata-se de uma conceituação expandida de letramento; desenvolve competências para aprendizes de todas as idades e requer uma prática integrada, interativa e repetida; seu propósito é desenvolver participantes informados, reflexivos e engajados, essenciais para uma sociedade democrática. Para a realização das entrevistas que norteiam os resultados do presente trabalho, elaborou-se um questionário semiestruturado com base nos seguintes eixos: 1. Trabalho didático sobre desinformação em sala de aula; 2. Desafios e potencialidades de se trabalhar o tema desinformação em sala de aula; 3. Consumo midiático das professoras. Para o presente trabalho, o foco está somente nos dois primeiros eixos, já que o nosso interesse é o tema desinformação sendo trabalhado didaticamente com base na BNCC. Foi possível diagnosticar que as professoras já trabalharam o tema desinformação em sala de aula. Partindo das diretrizes da BNCC, buscou-se identificar como e em que medida este é um assunto relevante para a vida dos jovens na contemporaneidade. Diz uma docente nas entrevistas que realizamos: “Costumo trabalhar o assunto com todas as minhas turmas com certa recorrência. Mas não foco exatamente nas informações falsas. Eu procuro trabalhar o gênero de notícias e estimular com que os alunos tenham uma interpretação crítica sobre o que leem e consomem como notícia”. Já outra docente diz que ainda não trabalhou o tema com suas turmas do ensino médio, mas o fez com uma turma do nono ano do ensino fundamental, no final de 2023. “Perguentei aos alunos: ‘viram a notícia de que o Neymar vai vir jogar pela Caldense?4 ’ No primeiro momento, ficaram espatandos, mas depois se animaram com a informação. Perguntei a eles o que fariam, agora, que sabiam da possível vinda de Neymar e muitos me responderam que iriam compartilhar com amigos e familiares. Foi neste momento que desmenti a informação. Me deu a imprenssão que aquilo era tão agradável a eles, que nem chegaram a duvidar do que eu disse.” A professora fez, então, uma dinâmica com os alunos: “Fiz um desenho no quadro ilustrando para quantas pessoas essa informação poderia chegar se, pelo menos, cada um dos alunos compartilhasse a informação falsa com pelo menos quatro amigos. O resultado impressionou eles. Vendo que o número de pessoas que cairia na mentira poderia facilmente quadruplicar”. As professoras entrevistadas afirmaram que as aulas ministradas sempre foram planejadas por meio de pesquisas sobre o tema para entender melhor o assunto, bem como maneiras didáticas de empregá-lo. Geralmente, segundo elas, o tema é levado à sala de aula a partir de relações pertinentes com assuntos que já estão sendo trabalhados com os estudantes. Não foram percebidas dificuldades por parte delas para elaborarem as aulas em questão, mas dizem acreditar que se a BNCC fosse mais clara em suas propostas, não só o trabalho teria sido facilitado, como também os resultados poderiam ser mais produtivos. Com relação às diretrizes da BNCC, as professoras se mostraram críticas. O Novo Ensino Médio também aparece nas respostas. “Acho as diretrizes muito universais. Acho muito difícil conseguir implementar e atender aos objetivos previstos nelas à realidade que temos na educação brasileira. Botelhos ainda é muito privilegiada, mas mesmo assim é difícil”. “São muitas aulas por dia e isso dificulta trazermos assuntos novos para sala de aula. É muito importante ensinar os alunos sobre assuntos novos, mas não podemos deixar de ensinar o básico, como gramática e produção de texto. Mas mesmo assim, somos cobradas. Salas superlotadas também são um problema, já que isso dificulta a comunicação entre aluno e professor. O Novo Ensino Médio é outro fator. Cada turma tem pouquíssimas aulas de Português por semana, já que outras disciplinas foram implementadas. Ao mesmo tempo que temos muitas aulas por dia, temos poucas aulas semanais com uma mesma turma, o que dificulta desenvolver atividades diferentes com cada uma delas.” As professoras também notaram que os estudantes se interessaram e participaram, mais do que o comum, nas vezes em que o tema desinformação foi trabalhado. “Foram bastante participativos. Até porque acredito ser uma coisa que deva estar muito presente no dia a dia deles. Levar algo diferente para sala de aula também ajuda a aumentar o interesse da turma.” “Avalio que conseguiram compreender bem o que foi explicado. Mas noto que eles não costumam se informar. Isso seria um diferencial para a formação deles: tanto se informar quanto aprender sobre coisas que estão no dia a dia deles.”. As docentes também reconhecem a importância de se tratar o tema desinformação para a formação dos discentes. “Acho que é muito importante, até do ponto de vista moral e ético. Para eles conseguirem diferenciar o bem do mal.”. “Seria ótimo ter esse assunto mais bem discutido. Eles não estão habitados a consumir informação. Muito menos em lugares seguros. Mesmo estando tão presentes na internet. Então, o que eles veem como ‘notícia’, já se torna uma verdade.”. Sob este aspecto, retornam-se às críticas sobre a BNCC e o suporte pedagógico que faltam às professoras para trabalhar o assunto. “Não somente sobre fake news, mas no geral, dá para aproveitar muito pouco o que tem na BNCC. É possível usá-la, realmemente, só como uma base que te orienta. Que te diz o que fazer, mas não é clara em como fazer, ao paço que somos cobradas, não somente com ‘novos assuntos’ como também os assuntos básicos.”. As entrevistas deixaram clara uma discrepância entre as diretrizes da BNCC e a realidade do próprio ambiente escolar. Embora a base incentive a autonomia das escolas em adequar os próprios curriculos, isso não resulta em aspectos positivos para a implementação do tema desinformação nas escolas. Notou-se que as professoras também se sentem desamparadas no exercício da profissão, pois precisam cumprir o que se pede, mas não é explícito como fazê-lo, tampouco uma formação é oferecida neste sentido. Compreendemos que abordar o tema desinformação escolas é de fundamental importância para a formação cívica dos jovens, em uma sociedade altamente midiatizada que tem a desinformação como um problema endêmico (Marshall, 2017). No entanto, torna-se necessário não somente a adequação de um ensino que possibilite este aprendizado, como também que ofereça condições e formação continuada de professores neste contexto, para que sejam oferecidos suportes pedagógicos para ampliar os recursos teóricos-metodológicos para suas práticas de ensino.

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