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ISSN : 2175-2389
O uso de IA em campanhas de beleza: perspectivas atuais
Fabiana Gillet, Ana Karoline Barbosa, Marcus Correa

Última alteração: 2024-06-08

Resumo


Uma das campanhas mais emblemáticas da publicidade brasileira é a Beleza Real da Dove. A campanha alcançou um nível de sucesso sem precedentes no mundo da publicidade. O que começou como um projeto publicitário tradicional rapidamente se transformou em algo muito mais significativo. Ricardo Honegger, diretor de contas da agência, atribuiu o sucesso da campanha à sua capacidade de transcender os limites convencionais da publicidade. Uma pesquisa global revelou que apenas 4% das mulheres se sentiam verdadeiramente seguras em relação à sua aparência, revelando um fenômeno de autocrítica generalizada, o qual pode ser compreendido a partir dos efeitos da indústria da beleza e da pressão estética sobre as mulheres. O vídeo apresentou o artista forense Gil Zamora criando retratos-falados das mulheres com base em suas próprias descrições, e depois com base em testemunhos de terceiros. O comercial destacou como todas as voluntárias tinham uma visão muito mais crítica de si mesmas do que o observado pelos outros. Essa abordagem emotiva e reflexiva foi o cerne do enorme sucesso e impacto social da campanha (Como..., 2013).

Pesquisas que discutem a questão da beleza feminina em diversos campos de estudo demonstram que a pressão estética exercida sobre as mulheres é consequência de uma estrutura social marcada pela desigualdade de gênero, cuja manutenção é exercida através de tecnologias de gênero (Lauretis, 2019) que determinam os papéis sociais de homens e mulheres, em que a beleza é uma das ferramentas de manutenção de poder que mantém as mulheres em posição social inferior aos homens. Conforme apontam Wolf (2020) e Zanello (2018) acerca do mito da beleza e do dispositivo amoroso respectivamente, a nossa sociedade foi construída de modo que mulheres precisem alcançar determinado padrão de beleza para se tornarem atraentes aos homens, os quais devem escolher uma parceira que atenda a esses requisitos estéticos. Considerando ainda, questões relacionadas ao sistema capitalista neoliberal vigente, tem-se a relação do corpo ideal, sobretudo magro, como símbolo de sucesso de caráter individual, o qual exprime o almejado bem-estar individual, objetivo final do paradigma médico-esportivo (Soares, 2009) e fomentado pelo dispositivo da magreza (Martins, 2006). Este corpo, por sua vez, se apresenta em um modelo irreal e cada vez mais inalcançável, de modo que as mulheres mantenham sempre o esforço (psicológico, emocional, financeiro, material) em busca de alcançá-lo. O que já era influenciado pela manipulação e edição de imagens do corpo, pode se atenuar com a criação de imagens inteiramente artificiais.

A campanha #MANTENHAABELEZAREAL da Dove este ano se pautou em assumir um compromisso contínuo em desafiar os padrões de beleza convencionais, especialmente em uma era cada vez mais dominada pela Inteligência Artificial (IA). Com a previsão de que 90% do conteúdo online será gerado por IA até 2025, a marca reconhece os desafios que isso representa para a autenticidade e diversidade da beleza. A nova campanha chamada "O Código Dove" destaca como os esforços da marca ao longo de duas décadas para representar e celebrar a "Beleza Real" provoca a reflexão junto a necessidade atual de evitar estereótipos e distorções causadas pela IA. As estatísticas revelam que uma em cada três mulheres sente pressão para alterar sua aparência devido aos conteúdos manipulados ou gerados por IA que veem online. Assim como a distorção de imagem causada por filtros embelezadores de redes sociais (Montardo; Prodanov, 2022), vemos assim, o desdobramento de crises que já eram geradas e fomentadas pela profusão de imagens de corpo perfeitos e irreais na mídia, o que provoca uma abstração do corpo real, afetando as subjetivações de mulheres que ao serem interpeladas por estas representações passam a ter uma imagem pessoal distorcida e diferente de como são vistas pelos outros. Dove reafirma em sua campanha o compromisso de não utilizar IA para criar ou distorcer imagens femininas, destacando sua posição como defensora da diversidade e da verdadeira representação da beleza (A Beleza..., 2024).

Este modelo imagético irreal propagado por imagens midiáticas é chamado por Sanches (2018) de “corpo-projeto”, o qual é um corpo artificial, idealizado, perfeito, inalcançável e insuperável que seria conquistado, dentre outros artifícios, através de dietas restritivas. É este o “corpo-modelo” do paradigma médico-esportivo (Teixeira, 2011). Santaella (2004) chama de “corpo exorbitante” o “corpo especular das imagens das mídias”, tendo em vista que estas imagens são somente duplos que revelam ou tentam representar traços do “real”, ocultando outros, a partir de imagens (Santaella, 2020).

A popularização da IA tem reflexos importantes nos processos cotidianos, é inegavél a facilitação de tarefas repetitivas, por exemplo, ou mesmo a automatização de processos, mas é preciso levantar algumas importantes questões quanto ao seu uso consciente. A falta de originalidade, reprodução de preconceitos e padrões discriminatórios, uma política não transparente quanto a privacidade e tratamentos de nossos dados são apenas alguns dos questionamentos que precisam ser feitos sobre a utilização de IA. Mas se tratando de processos criativos temos uma reflexão mais profunda a fazer: a IA não tem poder criativo. Críticos argumentam que a criatividade humana envolve aspectos emocionais, intuição, experiência subjetiva e consciência, que atualmente estão além da capacidade das IAs. Portanto, a criatividade da IA pode ser vista como uma simulação de criatividade baseada em algoritmos e dados, sem uma compreensão verdadeira do significado ou contexto (Sampaio et al. 2023).

Pensar o uso das IA na prática profissional de publicidade e design se faz necessário pelo impacto que exercem na realidade social, nas práticas de consumo, na comunicação visual. O exercício profissional não está à parte do contexto em que publicitários(as) e designers estão inseridos(as). Neste sentido, são necessárias abordagens que visem a produção de conteúdos visuais responsáveis e a ética profissional. Pater (2019) observa que os padrões de beleza que são exigidos às mulheres através da moda e publicidade, por exemplo, só existem como resultado da manipulação digital.

A respeito da campanha Beleza Real da Dove, de 2007, Pater (2019) destaca que as modelos escolhidas pela marca para protagonizar a campanha, ainda eram obviamente selecionadas segundo critérios de beleza, além disso a campanha ainda lançaria o pressuposto da beleza como qualidade mais importante de uma mulher e ainda, a incongruência da campanha da Dove em relação às outras marcas de cosmétivos e produtos para beleza, da mesma empresa (Unilever). Não negando a importância das campanhas promovidas pela Dove para as discussões acerca dos padrões de beleza em campanhas publicitárias, as quais colocam em questão as definições de beleza feminina.

Neste sentido, destaca-se que profissionais criativos como designers e publicitários, precisam ter o compromisso com representações responsáveis de sujeitos, corpos com características diversas, objetivando reduzir os impactos destas imagens que contribuem para manutenção dos padrões inalcançáveis de beleza, distúrbios de imagem e alimentares, baixa autoestima e ainda, estereótipos sexualizados (Pater, 2019).

Pater argumenta que o design não é neutro; ele carrega valores e preconceitos que podem influenciar a sociedade de maneiras sutis e profundas. No contexto das campanhas de beleza, isso significa que as decisões de design tomadas ao desenvolver algoritmos de IA podem contribuir para a manutenção de hierarquias raciais e sociais. Por exemplo, se um algoritmo é treinado predominantemente com imagens de pessoas brancas, ele tenderá a reconhecer e valorizar esses rostos em detrimento de outros, reforçando padrões de beleza que excluem grupos raciais minoritários.

Tarcízio Silva, em seu livro "Racismo Algorítmico" (2022), complementa essa discussão ao destacar como tecnologias raciais incorporam e perpetuam hierarquias raciais. Silva critica a falta de diversidade nos dados de treinamento e nos times de desenvolvimento das tecnologias de IA, o que resulta em algoritmos enviesados. Esses vieses não são meramente falhas técnicas, mas reflexos das desigualdades sociais existentes. No contexto das campanhas de beleza, isso pode significar que os algoritmos promovem uma estética que marginaliza ou invisibiliza pessoas negras e outras minorias étnicas.

Ellen Lupton et al., em seu livro "Extra Bold: um guia feminista, inclusivo, antirracista, não binário para designers" (2023), argumenta que o design deve ser uma ferramenta para promover justiça social e equidade. Lupton destaca a importância de incorporar conceitos de feminismo, antirracismo, interseccionalidade e equidade no processo de design, garantindo que as soluções tecnológicas, como a IA, não apenas representem a diversidade, mas também desafiem e desfaçam estruturas de poder opressivas. No contexto das campanhas de beleza, isso significa criar algoritmos que reconheçam e celebrem a diversidade em todas as suas formas, evitando a perpetuação de padrões de beleza eurocêntricos e excludentes.

Através de uma abordagem qualitativa, centrada na coleta de dados por meio de questionários aplicados a estudantes de publicidade e design, a pesquisa será estruturada nas seguintes etapas: primeiro, os participantes serão apresentados ao comercial da Dove que aborda a temática da "Beleza Real" e reflete sobre o impacto da Inteligência Artificial (IA) na representação visual com a atriz Paola Oliveira[1]. Em seguida, os participantes serão convidados a responder a um questionário detalhado que explorará suas percepções sobre o uso da IA nesse contexto específico. O questionário incluirá perguntas abertas e fechadas, abrangendo temas como a autenticidade da representação, os efeitos da IA na construção de imagens corporais e a ética por trás do uso dessa tecnologia na publicidade. Os dados coletados serão analisados de forma qualitativa, buscando identificar padrões que possam informar as discussões sobre o impacto da IA na indústria publicitária e de design, particularmente no que diz respeito à representação da beleza.

Este estudo de caso (Yin, 2010) proporcionará uma compreensão aprofundada das percepções dos estudantes em relação à interseção entre IA, representação visual e conceitos de beleza na publicidade contemporânea. Centrando-nos em um diálogo estreito com estudantes, colocando-os no centro da investigação, de modo que sejam incentivados a realizar suas próprias interpretações da prática profissional, reconhecendo-os como iguais no que diz respeito à construção do campo e tendo suas vozes amplificadas e respeitadas no âmbito do ensino da publicidade e do design (Hansen; Petermann; Correa, 2020), dando pistas sobre as perspectivas atuais, na formação de profissionais criativos, do uso de IA em campanhas de beleza.


[1] Disponível em: https://www.instagram.com/reel/C5lsSexL0YO/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==


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