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ISSN : 2175-2389
A INVENÇÃO DO GORE NAS REDES SOCIAIS E AS NOVAS SUBJETIVIDADES
Nathalia Brunet Cartaxo Braga

Última alteração: 2024-06-08

Resumo


A invenção do Gore nas redes sociais e as novas subjetividades


Nathalia Brunet Cartaxo Braga



O tema deste trabalho se vincula à tese de doutoramento que estou realizando na Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Com o objetivo geral de traçar um panorama comunicacional e psicanalítico das expressões de violência nas redes sociais, levando em conta a emergência da cultura de ódio contemporânea, questões importantes são atravessadas por um certo tipo de erotismo.


Não faz muito tempo, a circulação de conteúdos de violência extrema era restrita à deep web. Uma mudança significativa de cenário vem ocorrendo nos últimos anos, em que é possível perceber o tráfego ativo das expressões de ódio nas redes sociais que habitam a camada mais aparente da Internet. Essa mudança pode ser demonstrada através do surgimento de grupos on-line cuja identidade e narrativa se justificam em nome da violência. A pesquisa que desenvolvi no mestrado é sobre os incels, sigla para celibatários involuntários, grupo de homens que interage nas redes sociais de forma anônima a fim de manifestar seu ressentimento contra as mulheres, acusando-as de sua condição celibatária. O importante a se refletir é sobre os desdobramentos desse tipo de violência, tendo em vista que seu fomento ocorre nas redes mas não se restringe somente à elas, se desdobrando em violência na realidade. Existem casos de atos de violência em escolas, à exemplo dos massacres em Suzano e no Realengo, que apontam para a ligação dos autores dos crimes com esses grupos on-line, onde os envolvidos puderam narrar previamente seus objetivos de morte. Um tema delicado e incipiente que pede por uma reflexão mais profunda.


A continuidade da pesquisa alcançou outras realidades tóxicas, para além dos fóruns de misoginia, se valendo de núcleos de violência formados em redes sociais da superfície da Internet. Através do acesso às plataformas como WhatsApp, Telegram e X, chegou-se a uma subcultura denominada de Comunidades Gore. Gore é um termo em inglês que designa sangue derramado, sanguinolência, excesso de sangue etc. Os usuários que se comunicam nesses grupos têm um interesse específico: a visualização de conteúdos de violência extrema, tais como: corpos ensanguentados, restos humanos, cenas de briga, acidentes de trânsito etc. O corpo humano é o protagonista do conteúdo Gore, apresentado sob um aspecto extremamente destrutivo.


Em contato com o objeto de estudo, algumas conexões se formaram, indicando novos caminhos e levantando questões importantes. À medida que me tornava mais íntima com o estilo de violência propagada nos grupos, pude perceber um certo tipo de erotismo como elemento fundamental desse banquete de sangue. Entre inúmeras imagens de violência compartilhadas, se encontram também imagens eróticas produzidas digitalmente e por Inteligência Artificial. São imagens de bonecas femininas, no estilo anime japonês, com seus corpos dilacerados, cujos elementos significativos do repertório Gore é possível localizar através da exposição de seus órgãos internos ensanguentados. As imagens foram retiradas do grupo do WhatsApp "Gore e Zueira", onde participo desde o ano de 2022. O lócus de observação da pesquisa são as plataformas sociais WhatsApp, Telegram e X, dado a a presença ativa dessas redes na vida de inúmeras pessoas e a facilidade de busca. Essas indicações tornam o lócus ainda mais interessante e também alarmante, pois é cada vez mais banal o acesso do público aos conteúdos de violência extrema. O objetivo do trabalho é realizar uma análise qualitativa exploratória de 06 imagens difundidas no grupo de WhatsApp, uma das plataformas proeminentes no compartilhamento de conteúdo Gore.


A relevância do trabalho extrai sua justificativa pela complexidade subjetiva e cultural do objeto de estudo. O que podemos investigar a respeito desses microcosmos de violência, que se organizam em rede para o compartilhamento de corpos em sofrimento? Quais são os efeitos psíquicos nas subjetividades implicadas em tais trocas comunicacionais? É fato que existem, nesse processo, desdobramentos psíquicos e sociais, individuais e coletivos. A ideia é poder extrair signos desta análise e colocá-los numa perspectiva semiótica e psicanalítica, de modo a possibilitar uma reflexão sobre os seus efeitos no contexto social.


Com a finalidade de produzir uma reflexão crítica sobre o objeto apresentado, os parâmetros teóricos e analíticos escolhidos são uma junção dos campos da Semiótica e da Psicanálise. A intenção é investigar os efeitos psíquicos produzidos nos indivíduos que participam desse campo de produção sígnica. Dado que a Semiótica Psicanalítica é uma disciplina que estuda as consequências psíquicas dos signos culturais (CESAROTTO, 2013, p. 37), essa convergência teórica é fecunda devido a oportunidade de costurar e juntar epistemologicamente os pontos dos emaranhados das representações da cultura, com seus sintomas, contradições e impasses.



As representações da sexualidade, suas imagens e metáforas, constituem um interesse específico da Semiótica Psicanalítica, por colocar em questão a significação do falo na contemporaneidade, um problema ao mesmo tempo semiótico e psicanalítico, epistemológico e amoral. A Semiótica incrementa a Psicanálise com seu repertório de meios e linguagens; a Psicanálise introduz na Semiótica o inconsciente e a libido (CESAROTTO, 2013, p. 37).



Se a Semiótica de extração peirceana nos auxilia na tarefa de mapear a ação do signo e, portanto, analisar o funcionamento sígnico da Internet, a Psicanálise de orientação Freud-lacaniana, estruturada numa rede conceitual topológica, permite pensar a subjetividade e o universo das representações ideológicas, desvendando suas éticas e estéticas.

As expressões de ódio na contemporaneidade impõem a composição de um pensamento que não ignore as complexidades da sobredeterminação inconsciente do sujeito, seja em termos de adequação ou de sintoma. Importante indicar que a Psicanálise nos ensina que não há indivíduo sem ódio. Afeto fundamental na constituição do sujeito, o ódio se configura também no pacto civilizatório: a renúncia das pulsões individuais ocorre em função da obra coletiva, de modo a permitir o arranjo do laço social. Se não há cultura sem ódio, qual seria o lugar, a função do ódio no corpo social?


Ao discorrer sobre os traços característicos da cultura na obra O Mal-estar da Civilização, Freud (1930-2010) identifica a substituição do poder do indivíduo pelo poder coletivo como um elemento cultural decisivo no arranjo civilizatório da comunidade humana. A exigência cultural põe limites e fronteiras no indivíduo cujo sacrifício pulsional não ocorre sem conflitos. "Que a vida humana se torna possível quando há uma maioria que é mais forte que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo. Então o poder dessa comunidade se estabelece como "Direito", em oposição ao poder do indivíduo, condenado como "força bruta" (FREUD, 2010, p. 57).


Na construção de seu pensamento, o psicanalista vienense já havia colocado os conflitos relacionados às pulsões no texto As pulsões e seus destinos de 1914. O que se segue é que a questão do ódio no texto do Mal-estar da Civilização, vai estar impregnada de sua reflexão sobre a pulsão de morte. Essa questão é fundamental para pensar sobre o papel que a agressividade assume no indivíduo e no coletivo, pois não se pode ignorar que a vida psíquica está entrelaçada na vida social. A reflexão que Freud tece no texto de 1930 é fundamental sobre a discussão do ódio, porque ele vai considerar que tanto a constituição do sujeito como a construção da civilização ocorre através de uma renúncia pulsional, experiência marcada por uma agressividade característica da perda do objeto primordial, da perda de gozo.


Para Freud, a cultura ocupa um lugar de ambivalência. Se ao mesmo tempo é ela que nos protege da transgressão, do parricídio e do incesto, por outro lado, a própria cultura atua com violência para que esse mesmo lugar de proteção seja assumido. À medida que protege, também reprime, proíbe, põe limites e castra. Ou seja, a proteção oferecida pela civilização tem um preço que é percebido pelo indivíduo em sua própria experiência de ser falante, portador de um corpo pulsional no campo da linguagem.


O psicanalista francês Jacques Lacan, em seu retorno à obra freudiana, adiciona camadas de complexidade muito pertinentes à teoria psicanalítica. Lacan admite três registros psíquicos que compõem a experiência humana, são eles: Imaginário, Simbólico e Real. Para demonstrar o funcionamento psíquico, ele expõe a analogia do nó borromeano, onde esses três registros estão anelados. A maneira de Lacan abordar a constituição do eu do sujeito é através da teoria do Espelho, instância psíquica própria do funcionamento do Imaginário. O Imaginário, ancorado na produção de imagens, é o registro da ilusão de compreensão. Quando se pensa o indivíduo numa dimensão imaginária, há de se levar em conta a dispensa da necessidade de pensamento em função de microfragmento de gozo a cada instante que é ativado. A ideia é costurar relações entre a predominância do registro do Imaginário com a cultura do ódio contemporânea, cujo desejo de aniquilamento do outro, se apresenta como um modo de defesa bastante primitivo.


Palavras-chave

Gore; Violência; Ódio; Semiótica; Psicanálise.


Referências


FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.



FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.



LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.



SANTAELLA, Lucia; HISGAIL, Fani. (Org). Semiótica Psicanalítica: clínica da cultura. São Paulo: Iluminuras, 2013.






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