Última alteração: 2024-07-02
Resumo
Nas sociedades conectadas, tanto homens, quanto mulheres, entre outras possibilidades de corporalidades e definições, produzem imagens íntimas de si e as digitalizam para socializar na intimidade das suas relações. A priori, nada de violento há nessa dinâmica de interações mediadas por tecnologias digitais de humanos hiper híbridos (SANTAELLA, 2021). No entanto, são meninas e mulheres que passam a ser vítimas do processo de circulação massiva desse fenômeno social contemporâneo, retirados do contexto dos quais foram produzidos, os conteúdos transformam-se em um tipo de violência cometida em rede, potencializado pelo uso intensivo de smartphones e pelos processos de datificação.
Quando a produção massiva e em grande escala de conteúdos íntimos com apelo sexual e erótico de mulheres são tratados na internet como commodities comercializáveis por meio de alianças entre plataformas, atores sociais, humanos e não humanos, seus corpos são reduzidos a códigos, links e pacotes, rastreáveis, perfilados e negociados, alimentando bancos de dados e sistemas algorítmicos por meio de aprendizado de máquina profundo e redes neurais artificias generativas conseguem hoje, difundir o fenômeno que vem sendo chamado de deepfake.
Os algoritmos aprendem a partir da inserção de dados como devem se comportar, o que devem prever, o que devem impulsionar, o que devem esconder e através de programação de linguagem natural, aprendem como devem informar (KAUFMAN; SANTAELLA, 2021). Nessa direção, os algoritmos são também processos históricos que recontam, recriam e criam narrativas textuais e imagéticas sobre as pessoas. As mulheres nesse contexto, com seus corpos massivamente circuláveis em grandes quantidades de dados por meio de imagens sexuais e eróticas sem consentimento, passam a ser alvo da reprodução histórica que retroalimenta e reconta narrativas de submissão, dominação e servidão.
A sociedade de plataforma (DICK e POELL, 2019), capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2019), colonialismo de dados (COULDRY e MEJIAS, 2018) e colonialismo digital (FAUSTINO e LIPPOLD, 2023), são termos críticos e perspectivas analíticas desse cenário datificado. De acordo com Couldry e Hepp (2018), quatro ondas midiatizadas correspondentes ao contexto e momento histórico relativos à industrialização e meios de comunicação de massa, antecedem a sociedade de dados. Contando a partir da mecanização, na sequência, eletrificação, digitalização e por último, a dataficação, refere-se ao processo de coleta e extração de dados de pessoas e da internet das coisas, transformando a experiência humana de forma invisível e preditiva para fins econômicos e de forma monopolizada.
A datificação, considerada a segunda era da internet, posterior a digitalização (SANTAELLA, 2021), marca um outro nível de exploração e extração da experiência das mulheres transformadas em dados. Se em um primeiro momento a digitalização de conteúdos de mulheres torna acessível e distribuível aos usuários em rede materiais de forma não consentida, os processos dataficados lucram com o tráfego em larga escala de dados gerados a partir de conteúdos íntimos e com apelo sexual de meninas e mulheres, contando com a cumplicidade entre atores sociais e plataformas da internet.
Segundo Couldry e Campanella (2019), para além do desenvolvimento do sistema capitalista, a datificação configura-se por uma nova fase na experiência humana, na qual, a quantificação de todos os aspectos da vida transformada em dados comercializáveis, se tornam a ordem social e econômica a partir da apropriação e extração contínua da vida. Para os autores, um outro estágio do colonialismo se organiza no mundo contemporâneo, o colonialismo de dados.
A datificação torna a relação entre humanos, não humanos, coisas e objetos em dados de monitoramento, vigilância, cruzamento de dados e predição com o propósito de mercado (COULDRY e MEJIAS, 2020; DA SILVEIRA, 2021). Em outras palavras, a datificação e suas narrativas de customização, personalização, gratuitidade e conveniência (DICK, 2021), organizam toda estrutura social, desde as sociabilidades, produção e agenciamento de conhecimento e a relação com a natureza, traduzindo e manipulando a vida em dados rastreáveis, quantificáveis, analisáveis e performativos (LEMOS, 2021).
Nesse cenário, as discussões ciberfeministas apontam como as tecnologias e a internet não são neutras, embora tenha forjado em suas estruturas materiais e simbólicas, noções de objetividade e neutralidade algorítmica (NATANSOHN, 2013). A internet com todos os processos derivados de tecnologias da comunicação, informação digital e de produção de dados, possuem não apenas gênero, como também raça, classe, idade, localização, entre outras intersecções interpeladas pela tecnologia (WACJMAN, 2012; BENJAMIN, 2019).
Sob essas perspectivas, a datificação é atravessada pelas dinâmicas sociais de reprodução sistemática de gênero que perpetua relações de violência contra as mulheres em todos os espaços a partir da ampla circulação, comercialização e acumulação de dados relativos a conteúdo com apelo íntimo e sexual de mulheres sem consentimento.
Os pacotes circuláveis com conteúdo de meninas e mulheres são transformados em lances de conjuntos de dados que não retratam apenas a forma como a internet se configura no território para objetificação abstrata do corpo feminino, suas imagens e vídeos se tornam parte das dinâmicas de públicos invisíveis, borramento de fronteiras entre público e privado e colapso de contextos, persistindo ao tempo de forma buscável e replicável (BOYD, 2016), escalonando os circuitos digitais como um produto/objeto infocomunicacional.
Configurados em dados quantificáveis em larga escala, os conteúdos de meninas e mulheres representam sistemas culturais de pensamento ou esquemas patriarcais do pensamento (SAFFIOTI, 2000), revelando quais produtos culturais são relevantes e potentes em rede e como funcionam as tecnologias de gênero (LAURETIS, 1997). Desta forma, dados são fenômenos culturais, políticos e econômicos tanto quanto técnicos (TOMAZ e SILVA, 2018)
Nessa direção, os processos sociais incorporados e corporificados na internet (HINE, 2015), por meio de plataformas, mídias sociais e sistema de dados, inteligência artificial e aprendizado de máquina, tensionam como a tecnologia, além de reprodutoras sociais, portanto sociotécnicas (DIJCK, 2016), podem ser intensificadoras e amplificadoras de violências de gênero direcionadas as mulheres (NERIS, 2022; NATANSOHN, 2021; AUTOR(A), 2022).
O ecossistema coordenado por um modelo de negócio orientado à expropriação de conteúdos de mulheres cria com ampla facilidade, espaços predatórios de seus corpos. Aqui, as lógicas do mercado se tornam evidentes, observadas por práticas de venda, lei da oferta e demanda e tráfico de conteúdo sem consentimento. Por apenas $5,00, é possível adquirir pacotes com conteúdo íntimo, acessíveis por tempo indeterminado e com acesso vitalício. Esse fenômeno é característico de uma época e contexto altamente conectados e multimidiáticos.
Os algoritmos não são neutros, acabam por facilitar o acesso aos perfis de meninas, uma vez que as buscas e pesquisas na internet modulam perfis e direcionam conteúdos, agendas e usuários conforme os históricos digitais e trajetos orientados por dados. Diante desse contexto, o rastreamento e modulação de comportamento por meio do capitalismo de plataforma atua como modelo de negócio, organizando as relações e interações, capturando, extraindo e acumulando dados pessoais para os interesses das big techs (VAN DIJCK et al., 2019; SILVEIRA, 2017). Sob esse prisma, a cultura algorítmica, construída por marcadores da diferença, de maneira visceral reproduz lógicas de desigualdades, incluindo, sobretudo, obter lucro de corpos que historicamente foram mais explorados (CARREIRA, 2018; BENJAMIN, 2019).
Na sociedade de dados, as buscas realizadas pelos dispositivos tecnológicos são impulsionadas por conjuntos de dados acumulados do usuário, compostos por camadas perfiladas. Esses dados transformam cliques em conjuntos de informações com base nas referências registradas. A falta de neutralidade algorítmica resulta na incorporação de vieses de gênero e raça, levando a resultados sexistas, racistas e excludentes (STRIPHAS, 2015; SILVEIRA, 2017; BENJAMIN, 2019; CARRERA, 2020).
Ao discutir as condições nas quais a cultura do algoritmo se desenvolveu e em que caminho se direciona, Ted Striphas (2015) aponta que os bancos de dados sobre indivíduos online fazem a manutenção de um sistema que transforma como a cultura é vivida e sentida, organizada pelas plataformas. O autor afirma que os algoritmos se tornam decisivos, e "empresas como Amazon, Google e Facebook estão se tornando rapidamente, apesar de sua retórica populista, os novos apóstolos da cultura" (STRIPHAS, 2015, p. 407).