Sérgio Amadeu: As big techs integram o aparato de poder dos EUA
Assim como as petroleiras e o setor financeiro atuaram com os EUA na era industrial, as Big Techs são as grandes parceiras hoje do projeto de poder dos EUA
FONTE: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/as-big-techs-integram-o-aparato-de-poder-dos-eua/
Por Sergio Amadeu
9 de maio de 2024
Em março de 2014, meses após Edward Snowden denunciar o esquema de vigilância massiva e espionagem global praticadas pela NSA (National Security Agency), o então presidente Barack Obama convocou uma reunião com alguns líderes das grandes empresas de tecnologia. Estavam presentes Mark Zuckerberg (Facebook), Eric Schmidt (Google) e outros. A imprensa divulgou que o presidente norte-americano tentava acalmar os líderes das empresas de tecnologia que tiveram sua confiança abalada pelas denúncias de espionagem de seus usuários.
Alguns CEOs das Big Techs apareceram publicamente indignados com a permanente coleta de informações dos seus clientes. Dirigentes da Microsoft e da Apple se mostraram surpresos com o esquema de captura de dados das populações sem que elas tivessem conhecimento e sem contar com o seu consentimento. Estranho. Repentinamente, os executivos das Big Techs aparentavam ter descoberto o que todos os especialistas acadêmicos já desconfiavam. Eram ingênuos? Não sabiam de nada? Isso parece pouco provável.
Na realidade, cada vez mais as Big Techs e suas plataformas integram o sistema de segurança e de manutenção de poder global dos Estados Unidos. Em 2013, Eric Schmidt tinha escrito, em parceria com Jared Cohen, assessor de segurança da Casa Branca, o livro The New Digital Age: Reshaping the Future of People, Nations and Business. Schmidt defendia que empresas como o Google tivessem assento no Conselho de Segurança dos Estados Unidos. O livro trazia o cenário presente e o futuro das redes, além de uma série de proposições. A impressão é que Cohen e Schmidt tentaram lançar algo como o Príncipe Digital, uma versão da obra de Maquiavel para o século XXI. O texto era endereçado aos que decidem sobre os rumos da Casa Branca.
Schmidt e Cohen descreveram que o marketing é vital para os Estados nacionais e que as disputas dependeriam de quem tem o melhor uso dessas técnicas de disputa da opinião pública. Com uma narrativa bem relativista, utilizaram até mesmo um termo pouco usado em 2013: a desinformação. Expuseram também um cenário em que os conflitos digitais, ataques cibernéticos, de negação de serviço de infraestruturas acessíveis pela internet exigirão um aperfeiçoamento das atividades e organizações de segurança. No capítulo 6, intitulado The Future of Conflict, Combat and Intervention, os dois oráculos do Vale do Silício retrataram algo demasiadamente esclarecedor:
“Grupos em conflito tentarão destruir as capacidades de marketing digital uns dos outros antes mesmo de o conflito começar. Poucos conflitos são claramente preto no branco no final – muito menos quando começam – e esta quase equivalência no poder das comunicações afetará decisivamente a forma como os civis, os líderes, as forças armadas e os meios de comunicação social lidam com o conflito. Além do mais, o próprio fato de qualquer pessoa poder produzir e partilhar a sua versão dos acontecimentos irá, na verdade, anular muitas reivindicações; com tantas contas conflitantes e sem verificação confiável, todas as reivindicações ficam desvalorizadas. Na guerra, a gestão de dados (compilação, indexação, classificação e verificação do conteúdo proveniente de uma zona de conflito) sucederá em breve ao acesso à tecnologia como desafio predominante.”
Assim como as petroleiras e o setor financeiro atuaram com os EUA na era industrial, as Big Techs são as grandes parceiras hoje do projeto de poder dos EUA.
Como é perceptível, o texto evidencia que não existe ingenuidade entre os executivos do Vale do Silício. Não por acaso, Schmidt articulou o Defense Innovation Board (Conselho de Inovação em Defesa), em agosto de 2016, “para levar a inovação tecnológica e as melhores práticas do Vale do Silício às Forças Armadas dos EUA”. Eric Schmidt dirigiu o Conselho da sua fundação até setembro de 2020. O governo norte-americano parece estar convencido mais do que nunca do papel fundamental das Big Techs para manter sua estrutura global de poder.
No final de abril último, o governo dos EUA formou mais um conselho de IA. Dessa vez incluiu Satya Nadella da Microsoft, Sundar Pichai da Alphabet, Sam Altman da OpenAI, Jensen Huang da Nvidia e 18 líderes empresariais de grandes corporações de capital norte-americano. O anúncio do Conselho foi feito com a definição de sua missão, que seria priorizar a segurança e proteção de infraestruturas críticas dos Estados Unidos contra ataques baseados em IA. Evitar que redes elétricas, aeroportos e infraestruturas de transporte, serviços financeiros, agricultura e alimentação sejam atacados é uma preocupação de defesa dos Estados Unidos.
Entretanto, cabe às Big Techs muito mais do que atuar sugerindo medidas para o U.S. Homeland Security Department (Departamento de Segurança Interna dos EUA – DHS). Atualmente, esses gigantescos oligopólios digitais integram o aparato de decisão e de atuação global dos Estados Unidos. A NSA e a CIA continuam coletando dados de todas e todos que utilizam seus serviços e redes de interações das plataformas digitais. As denúncias de Snowden nunca foram tão atuais. Assim como as empresas de petróleo e o capital financeiro atuaram em sintonia fina com o Departamento de Estado norte-americano durante a era industrial, as Big Techs são as grandes parceiras do projeto de manutenção do poder global dos Estados Unidos. Afinal, essas corporações possuem o principal ativo da nossa economia: os dados, que também são o insumo da Inteligência Artificial realmente existente.
(*) Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É professor-adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC). Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil.