Última alteração: 2023-04-04
Resumo
Este artigo tem como objeto de estudo as estratégias usadas por capoeiristas para lidar com o distanciamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Tendo como objetivo principal analisar como um homem vinculado a tradição africana, mestre de capoeira angola, com a cultura ligada a oralidade africana reorganiza os seus valores ancestrais e constrói uma roda virtual, utilizando a tecnologia e a comunicação como possibilidades de conexão dos capoeiristas e de enfrentamento ao isolamento social.
Será realizado um estudo etnográfico das aulas remotas que foram dadas pelo mestre Cláudio dos Angoleiros do Sertão, a partir de entrevistas com o mestre e contra-mestres do grupo, com a finalidade de identificar as principais ideias desta roda virtual, como se deu a sua formação em âmbito nacional em que ele chamou os alunos e estes vieram para a roda e gingaram.
Mestre Claudio Costa é natural de Feira de Santana, nascido em 1967. Em 1985 fundou a Escola de Capoeira Angoleiros do Sertão, atualmente um dos maiores grupos de capoeira angola do interior da Bahia. Realiza e coordena a Roda de Capoeira Angola e Samba Rural aos sábados em frente ao Mercado de Artes em Feira de Santana há aproximadamente trinta anos. Viajou por quase todos os Estados do Brasil e mais de sessenta países ministrando oficinas de Capoeira Angola, Samba de Roda Rural e outras expressões populares. Hoje, coordena o núcleo da Mantiba e do Centro Universitário de Cultura e Arte, extensão (CUCA) da UEFS. Realiza e coordena o Encontro Internacional de Capoeira Angola, dos Angoleiros do Sertão, há quinze anos, realizado anualmente durante o mês de janeiro, na Mantiba, zona rural de Feira de Santana, o qual reúne cerca de trezentas pessoas de vários estados do Brasil e países do mundo, com manifestações como a Capoeira Angola, Samba Rural, Bumba Meu Boi, Quebra Pote, confecção de instrumentos, Rei roubado, Nayambing, entre outras manifestações culturais.
A escola de capoeira Angoleiros do Sertão é originária da cidade de Feira de Santana-BA e foi fundada por Mestre Cláudio Costa. Atualmente, há núcleos do grupo desenvolvendo seus trabalhos nos estados da Bahia, São Paulo, Pernambuco, Amazonas, e em outros países como Alemanha, Finlândia, EUA e Colômbia. Os Angoleiros do Sertão é um grupo que agrega diversas manifestações culturais, com objetivo de manter as tradições afro-brasileiras, tendo como base de suas atividades a Capoeira Angola e o Samba Rural, estas são manifestações que representam a cultura de quilombos em Feira de Santana, buscando desenvolver o diálogo com vários segmentos da sociedade, sobretudo aqueles mais carentes.
Durante a pandemia, surgiu como aspecto relevante dentro deste movimento a ideia de fazer uma roda virtual contando com a possibilidade da tecnologia e da comunicação. Durante as aulas de capoeira através do aplicativo Zoom, foi possível ter aulas de musicalidade, treinos de movimentação da capoeira angola e rodas de conversa que abordaram os mais diferentes temas. Para a realização desta análise serão realizadas entrevistas com o mestre e contra-mestres para verificar como eles vivenciaram este momento.
O processo de construção da capoeira tem a ver com o lugar do negro no Brasil, o seu significado cultural muda e se atualiza de acordo com as transformações sociais em relação as formas de inserção e de percepção em relação a pessoa negra na sociedade. A capoeira no Brasil surge nos quilombos na época colonial quando pessoas negras escravizadas, para se defenderem faziam do próprio corpo uma arma. (REIS, 2000).
De acordo com Reis (2000), na capoeira parece existir uma circularidade simbólica que envolve os diferentes grupos raciais e sociais presentes, através desta interação “foi possível modificar estratégias e criar novos dispositivos culturais, onde todos tem acesso a símbolos, cores e sinais próprios da condição escrava”, inserindo os participantes nos elementos da cultura afro-brasileira. A capoeira foi criminalizada no Brasil até a década de 1930, um dos fatores que pode explicar esta criminalização é que “a noção de liberdade dos ex-escravos significava não ter que servir a pessoa alguma”, a liberdade é considerada crime num país de origem escravagista.
Mestre Pastinha[1] ensina que a capoeira é um meio de defesa e ataque, sua prática pode contribuir para o desenvolvimento físico e psíquico, estabelecendo um equilíbrio entre os dois pólos, e trás elementos subjetivos que são importantes para o desenvolvimento do jogo e da vida. Na ginga está a extraordinária malícia da capoeira, também chamado pelos capoeiristas de mandinga. “Essa noção é altamente politizadora na medida em que, inspirada na surpresa do ataque, subverte as hierarquias e instituí um contra-poder”. (REIS, 2000)
Araújo (2004) relata que os grupos de capoeira podem se organizar internamente buscando conhecimentos para a preservação da memória do grupo, a partir de estudos e trocas de informações. Através da vivência coletiva se constrói a valorização da hierarquia, da espiritualidade, ancestralidade, cooperação e solidariedade. Para que a capoeira tenha continuidade e seja valorizada busca-se aproximar espaços, trocar conhecimentos a partir da reflexão sobre os diferentes contextos sociais onde os capoeiristas estão inseridos reconhecendo o papel e a força de cada pessoa na constituição de saberes que se mantém em movimento, a busca pela liberdade e a sua preservação.
A circularidade, a roda, faz parte dos valores civilizatórios que a África e seus descendentes trouxeram como princípios e que marcam uma série de características existenciais objetivas e subjetivas, espirituais, intelectuais e materiais que foram construídas num processo histórico, social e cultural. Dentre estes valores civilizatórios, a autora chama a atenção para o axé como a representação da energia vital de todos os seres, a oralidade destacando que falar e ouvir podem ser libertadores, a corporeidade considerando que nossos corpos devem ser valorizados como lugar de construções de saberes, possibilidades e conhecimentos coletivos, a cooperatividade como espaço coletivo de ajuda mútua, entre outros (TRINDADE, 2013).
A roda aponta para o movimento, a circularidade, a renovação, o processo, a coletividade, enquanto elementos constituintes da sua estrutura. A construção destes círculos de pessoas necessita que algumas ações sejam fortalecidas como a autonomia, o diálogo, o movimento e o contato entre seus participantes, assim é possível ter acesso as diferentes perspectivas que promovem as mudanças, pois o conhecimento é coletivo e a sua construção é feito coletivamente (TRINDADE, 2013).
Freire (1974), utiliza como método de ensino-aprendizagem os círculos de cultura, onde a realidade pode ser revivida em profundidade, fazendo emergir a consciência a partir das vivências cotidianas. O processo de conscientização emerge a partir da objetivação, problematização e compreensão da realidade como projeto humano. Um grupo de pessoas, em círculo, utilizando do diálogo e da colaboração recíproca podem reelaborar o mundo, que foi construído para uma parcela da população, deixando grande parte fora do contexto da humanização e inclusão social.
A diversidade é posta como um desafio, mas é a partir da convivência com as diferenças que podemos aprender com sabedoria, respeito, humildade e até com amor. Quando percebemos as diferenças como valor, como expressão da riqueza e da diversidade humana, perdemos as certezas das verdades e juízos e somos colocadas no campo da dúvida, da inquietação e da busca. Somos seres diversos e temos como objetivo conviver com as diferenças e lidar com respeito e sabedoria com elas em todos os espaços (TRINDADE, 2013).
[1] Vicente Ferreira Pastinha nasceu em 5 de Abril de 1889, responsável pela difusão da Capoeira Angola, bem como pela reunião e organização dos princípios e fundamentos de um dos maiores símbolos da cultura brasileira. Assumindo a missão de organizar a Capoeira Angola e de devolver a ela seu valor e visibilidade, enfraquecidas pela emergência e popularização da Capoeira Regional, Mestre Pastinha funda o Centro Esportivo Capoeira Angola (CECA), localizado no Largo do Cruzeiro de São Francisco, a primeira escola de Capoeira Angola. Em 1952, o CECA foi oficializado e três anos depois sua sede muda para seu endereço mais famoso: o casarão da Praça do Pelourinho, nº 19. Neste período, Pastinha já estava com 66 anos de idade. Apesar desse raro momento de reconhecimento do Estado brasileiro da importância de Pastinha, o Velho Mestre trabalhou e empenhou-se pelo crescimento da Capoeira Angola quase sempre sem qualquer apoio ou incentivo dos órgãos públicos. Ao contrário disso, em 1971, foi vítima do processo de gentrificação (higienização social) que se deu no Pelourinho, local que começava a ser visado pela especulação imobiliária dado o forte apelo turístico do lugar.