ABCIBER | Simpósios e Encontros, ABCIBER XV - SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCIBER 2022

ISSN : 2175-2389
SUBMUNDO: Reprogramação algorítmica e ideológica do imaginário das vítimas internas
Priscila Magossi

Última alteração: 2023-04-04

Resumo


A presente argumentação refere-se ao resumo expandido do artigo proposto para o 10º EIXO TEMÁTICO “Afetos, sexualidades e tecnologias: redes de controle e de insurgência” do “XI SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCIBER — Curando Causas: Educação, Trabalho e Diversidade na Era dos Dados”, no qual pesquisas em torno da algoritimização da vida cotidiana, evidenciando disputas e conflitos, são a base para as propostas de trabalhos.

O estudo em questão é parte de uma pesquisa de Pós-Doutorado, em desenvolvimento pela Universidade Paulista (UNIP), sob supervisão da Prof. Drª. Malena Segura Contrera. Com pano de fundo profundamente crítico, investiga-se o processo de reconfiguração social-histórica do imaginário provocado por feeds algorítmicos de base ideológica na rede na sociedade mediática avançada. Na circunferência da pesquisa, o processo definido é compreendido como reprogramação do imaginário. O corpus trabalhado é o submundo do ciberespaço (um oligopólio cartelizado de sites de pornografia, webcamming e vendas de “packs” eróticos). Em sua totalidade, a pesquisa aborda o modo pelo qual o modus operandi do submundo retroage no modus vivendi das (i) vítimas internas (mulheres cis de países periféricos do capitalismo, notadamente da América Latina e do Leste Europeu) e das (ii) vítimas externas (homens heterossexuais de toda parte do globo), causando, por consequência, a necrose da sexualidade em escala planetária.

Posto isso, a proposta deste artigo caminha em direção a uma abordagem interdisciplinar de problemas do mundo tecnológico avançado no que concerne às macrorrelações sistêmicas e às hibridações tipificadas da intersecção inextricável entre submundo, cultura digital, vida cotidiana e imaginário feminino, a partir de um ponto de vista necessariamente crítico.

Destaca-se que o objeto de estudo desafia esforços da ciência tanto para a sua investigação quanto para a sua gestão de dados por pertencer à classe dos fenômenos invisíveis da cibercultura, ou seja, não é apreensível em sua essência, mas é passível de compreensão pelos seus efeitos sobre o tecido social.

Na circunferência desta pesquisa, o submundo é definido como uma configuração exploradora, patriarcal e cibercultural da sexualidade humana, na direção da mercadoria, completamente abandonada pelo sistema judiciário internacional. Tratam-se de grandes estruturas de poder, regidas por proprietários ocultos, que operam cuidadosamente em regime de comunhão entre si em prol da organização, da produção e da circulação de performances eróticas hiper-reais, majoritariamente do gênero feminino, produzidas com direções mercadológicas bem delineadas. Assim, a violência implacável contra a mulher (física, simbólica e invisível) é apresentada como mercadoria precificável na rede (em tempo real ou não) para consumo do homem heterossexual.

Dando continuidade ao descalabro imponderável do submundo contra os direitos humanos, toda interação virtual (assíncrona[1] e síncrona[2]) entre a vítima interna e a vítima externa é mediada e gravada pelos tomadores de decisão oligopólio cibercultural e utilizada para comercialização posterior.

No rastro dessa perversidade, todos os sites adultos, de toda parte do mundo sequestram a identidade da mulher por meio de um único modelo de contrato de trabalhista, no qual é exigida a renúncia permanente dos Direitos Fundamentais para que ela possa exercer a atividade profissional de acordo com as normas das empresas. Isto significa que todas as performances as performances eróticas e diálogos encontrados no submundo são construções artificiais e comerciais.

Fora isso, o contrato trabalhista também condiciona as mulheres a não causarem danos diretos e/ou indiretos à empresa, ao proprietário oculto e aos associados independentemente dos danos morais e financeiros que elas sofram durante o exercício da atividade profissional na plataforma. Essa cláusula retroage diretamente no recurso metodológico utilizado para elaboração da pesquisa, pois a tentativa de aplicação de questionário às produtoras de conteúdo adulto para apreensão de dados estatísticos poderia colocá-las em riscos — jurídicos e existenciais — caso as respostas não fossem favoráveis às empresas. Constata-se, assim, a inviabilidade do levantamento de dados dessa maneira na busca pela apreensão efetiva sobre o que as vítimas internas pensam e sentem a respeito do que vivem no submundo.

Entretanto, a ciência é patrimônio do saber coletivo e não pode ser cooptada pelo submundo. Dribla-se a perversidade da cláusula do contrato trabalhista ao optar pela realização de um estudo orientado por uma metodologia de ordem qualitativa, norteado pela relação tensional entre superfície e submundo do ciberespaço, concreto e simbólico, online e off-line, estabelecida com base no referencial epistemológico das teorias críticas da comunicação, da cultura virtual e do imaginário.  Para tanto, trabalhar-se-á com autores críticos das teorias da comunicação, da mídia, e da cultura digital — entre eles: Boris Cyrulnik (1995, 1999), Edgard Morin (1986, 1988, 2015), Eugênio Trivinho (2007, 2021, 2022), Guy Debord (1977), James Hillman (1993, 1994), Jean Baudrillard (1991, 2001), Malena Segura Contrera (2002, 2005, 2010), Theodor W. Adorno (1951, 1970) e Zygmunt Bauman (2000, 2003, 2008).

Em continuidade a definição conceitual, a reprogramação está acoplada aos avanços tecnológicos da sociedade mediática algoritmizada, com destaque para a vida cotidiana. Trata-se, em sentido amplo, de um processo psicossocial, online e off-line, individual e coletivo, de redução dramática da potência do imaginário provocada por feeds algorítmicos hipercustomizados, de base ideológica previamente definida por oligopólios ciberculturais. Nessa perspectiva, o ciclo da reprogramação da vida cotidiana, em sua totalidade, é composto pelo processo da reprogramação algorítmica e da reprogramação ideológica do imaginário. Isto significa que a reprogramação algorítmica pressupõe (e também conduz à) reprogramação ideológica de qualquer natureza, alterando, assim, o curso da instância civilizatória. Para enfatizar, o processo é inextricável entre ambas as vertentes.

A reprogramação algorítmica que conduz à reprogramação ideológica do imaginário apresenta-se como novo estágio (mórbido) econômico e social do desenvolvimento Capitalista, sustentado a partir da tecnologia (plataformas digitais que promovem interação em tempo real ou não), alimentado pela primazia da imagem (simulacro e hiper-realidade) sobre o objeto (necessidade de pertencimento e, no caso do submundo, de pulsão sexual também).

Neste espectro temático, trabalha-se com a hipótese de que o submundo da cultura digital adote a estratégia de produzir simulacro e hiper-realidade em doses suficientes que façam com que vítimas internas vivam dentro deste “mundo-cópia”, no qual os sentidos e as significações anteriores às da reprogramação sejam apagadas, e o referencial passe a ser o imaginário fabricado pelos algoritmos do submundo.

O objetivo é naturalizar a violência (física, simbólica e invisível) por meio de uma confusão semântica na ordem dos significantes mais nobres da subjetividade humana que confundem propositalmente interação com o outro com controle do outro, empoderamento feminino com subjugação feminina, entre outros. Assim, as próprias mulher são convencidas de que disponibilizarem seus corpos para controle, humilhação e subjugação online é um exercício de “liberdade” e “empoderamento”.

Descarta-se a hipótese de que o produto do submundo seja meramente a exposição da nudez do corpo feminino na rede. Defende-se, aqui, a tese de que a mercadoria do submundo seja a reprogramação do imaginário, por meio da cooptação de significantes nobres da subjetividade humana, afim de efetivar o curto-circuito do simbólico.

Uma vez compreendida a ruptura na cadeia de sentidos propositalmente causada por esta indústria obscura, o problema prioritário deste estudo centra-se em demonstrar como este oligopólio de empresas — que opera invisível — tem formatado o imaginário (no que se refere a subjetividade, o afeto e a sexualidade) das suas vítimas internas, direcionando-os tanto quanto possível para os seus próprios interesses econômicos.

Assim, a demonstração da teoria proposta será feita por meio do corpus da pesquisa: a argumentação iniciar-se-á pela análise do contrato trabalhista do site adulto brasileiro Dark Media/Câmera Privê[3], com o objetivo de demonstrar a intenção do submundo no que se refere ao retrocesso histórico dos direitos sociais e civis das mulheres. Em seguida, será exposto o contrassenso entre o teor do contrato e o discurso publicitário da mesma empresa (tweets), que associa suas vítimas internas à protagonistas do empoderamento feminino e da liberdade.

De acordo com as metas propostas, este estudo sobreleva o seu aspecto teórico e reflexivo, e justifica a sua relevância pela sua modesta contribuição ao campo de estudo da comunicação, da cibercultura e do imaginário com a análise fundamentada de conceitos que priorizam a defesa dos direitos humanos por meio do modo pelo qual os feeds algorítmicos hipercustomizados do submundo da cultura digital retroagem na vida cotidiana das suas vítimas internas e afetam dramaticamente os fluxos da época em curso.

 

Palavras-chave: cibercultura; imaginário; submundo; vítimas internas; reprogramação algorítmica; reprogramação ideológica.

 


[1] A comunicação assíncrona é aquela que acontece sem a interação em tempo real entre o emissor e o receptor da mensagem. No caso do submundo, tratam-se de performances eróticas de uma mulher gravadas com antecedência (por ela mesma ou por uma produtora) e disponibilizadas na rede para consumo posterior do homem heterossexual. A plataforma digital promove apenas a possibilidade deste consumidor assistir ao vídeo erótico, mas não de contatar a mulher diretamente.

[2] A comunicação síncrona é aquela que depende da interação em tempo real entre o emissor e o receptor da mensagem para existir. No caso do submundo, tratam-se de performances eróticas ao vivo que envolvem, necessariamente, diálogo entre as partes. A plataforma digital é o suporte comunicacional entre a vítima interna e a vítima externa, assim como também é o mediador responsável por estabelecer o formato a partir do qual a interação irá ocorrer.

 

[3] Segue link para acesso do contrato público da empresa brasileira do setor adulto como demonstração prática da teoria descrita:  https://models.cameraprive.com/br/legal/platform-agreement

 

 


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