Última alteração: 2023-04-04
Resumo
Principalmente a partir do período da pandemia mundial, em 2020, quando o isolamento social levou empresas, escolas e outras instituições a reconfigurarem sua forma de funcionamento para o espaço digital, se multiplicaram os estudos nas mais diversas áreas sobre fenômenos situados nesse contexto. A grande dificuldade encontrada por pesquisadores e pesquisadoras que se atreveram a estudar interações e fenômenos situados em um campo de pesquisa ainda tão pouco conhecido foi, sem dúvida, reunir uma base teórica e metodológica que pudesse nortear os novos estudos. Assim, da mesma forma como as instituições tiveram que se reconfigurar e adaptar sua estrutura para operarem no modo digital, os pesquisadores também precisaram adaptar conceitos e situações apresentadas por teóricos em décadas anteriores para tornar possível a construção de suas análises sobre o mundo digital.
Nesse contexto, os diversos estudos que vêm sendo desenvolvidos dentro das universidades contribuem para uma visão mais ampla desse processo de reconfiguração que se tornou evidente a partir do início da pandemia mundial. O compartilhamento dessas experiências de pesquisa tem sido de fundamental importância para os novos pesquisadores que buscam explicar comportamentos e fenômenos do ambiente digital: elas guiam análises e norteiam o percurso etnográfico de graduandos e pós-graduandos das mais diferentes áreas.
As dificuldades enfrentadas no início de nossas pesquisas no espaço digital e o acesso a relatos de outros estudantes que vivem experiências semelhantes às nossas, são fatores que justificam a produção deste artigo, cujo objetivo é promover uma comparação entre teorias e métodos formulados a partir de contextos e espaços diferentes, na busca pela construção de caminhos que permitam um diálogo entre o mundo atual e o digital.
Para fundamentar o artigo, recorremos ao simbolismo de Marcel Mauss (2003), ao funcionalismo de Bronislaw Malinowski (1978) e ao interacionismo simbólico de Erving Gofman (2004), buscando investigar as possibilidades de diálogo entre o contexto em que estavam situadas as suas pesquisas e o contexto digital. Para compreender a dinâmica que move esse novo contexto de estudo, orientamos nossas análises com base nas obras de Christine Hine (2004), Robert Kozinets (2008) e também na autoetnografia, através dos estudos de Adams, Jones e Ellis (2015).
A questão a que o estudo busca responder é: qual a importância desse diálogo para a construção de caminhos que possibilitem a validação científica da pesquisa no campo da Antropologia Digital? Para responder a esta questão, buscamos aqui trazer teorias e métodos utilizados em nossas pesquisas, ambas situadas no campo da Antropologia Digital, mais especificamente no ambiente dos games. Ambos os estudos se utilizam da autoetnografia como um aporte teórico e metodológico para tornar possível a compreensão das questões que permeiam o ambiente do jogo: aqui temos um gamer que se tornou pesquisador e uma pesquisadora que se tornou gamer. Adams, Jones e Ellis (2015) explicam que a autoetnografia é um método de pesquisa que considera a experiência de vida do pesquisador como importante fonte de conhecimento para que ele consiga não apenas descrever uma cultura ou um grupo social, mas também trazer importantes reflexões sobre a sua relação com os outros e críticas sobre situações que marcam as interações sociais dentro daquela cultura ou grupo social. Segundo esses autores, a autoetnografia permite mostrar as pessoas dentro do processo de descoberta sobre o que fazer, como viver, do próprio significado das suas lutas cotidianas. (ADAMS, JONES, ELLIS, 2015, p. 13).
Ao assumir esse caminho teórico e metodológico, os autoetnógrafos criam uma maior possibilidade de compreender o processo da sua própria interação social com o ambiente estudado, deixando visíveis as suas emoções e percepções, contrariamente à ideia de construção da pesquisa social enquanto um tipo de conhecimento objetivo, marcado pela neutralidade e distanciamento do pesquisador ou pesquisadora, com base apenas em métodos. Olhando sob este aspecto, a autoetnografia possibilita não apenas o traçado da estrutura de um determinado grupo social, como também aproxima mais o pesquisador da possibilidade de compreendê-lo e explicá-lo, conforme recomenda Malinowski, na introdução de sua obra “Argonautas do Pacífico Ocidental” (publicado em 1922). Na introdução desta obra, Malinowski (1978) aponta três caminhos básicos para que se consiga atingir o objetivo em uma pesquisa etnográfica:
1) A organização da tribo e a anatomia de sua cultura devem ser delinea-das de modo claro e preciso. O método de documentação concreta e estatística fornece os meios com que podemos obtê-las. 2) Este quadro precisa ser completado pelos fatos imponderáveis da vi-da real, bem como pelos tipos de comportamento, coletados através de observações detalhadas e minuciosas que só são possíveis através do contato íntimo com a vida nativa e que podem ser registradas nalgum tipo de diário etnográfico. 3) O corpus inscriptionum – uma coleção de asserções, narrativas típicas, palavras características, elementos folclóricos e fórmulas mágicas – deve ser apresentado como documento da menta-lidade nativa. (MALINOWSKI, 1978, p. 33)
No estudo de grupos sociais formados por gamers, por exemplo, como pode ser possível delinear “de modo claro e preciso” a estrutura do grupo, compreender as normas que o regem e explicar a dinâmica de interações, se o pesquisador não vier a integrar esse determinado grupo? Como ter contato mais próximo com os jogadores e profissionais que atuam no ambiente gamer e conseguir sua adesão a um projeto de pesquisa sem nascer, como personagem, no jogo? A autoetnografia pode ser um importante recurso para facilitar o delineamento da estrutura dos grupos, suas características, normas, linguagem e o próprio comportamento dos seus membros.
Há similaridades que unem as sociedades em qualquer tempo e espaço – embora cada uma delas tenha uma dinâmica com características bem diferentes. Em sua relação com os sujeitos da pesquisa, pode ser que o pesquisador também precise adotar costumes que fazem parte daquela cultura ou grupo social, para conseguir interagir com maior fluidez. Isso ocorre, por exemplo, no que se refere às trocas simbólicas, abordadas por Marcel Mauss, em seu “Ensaio sobre a dádiva”. Ele observa que essas trocas que ocorrem em algumas sociedades envolvem muito mais que bens materiais: o que se troca são amabilidades, presentes, cortesias que se constituem em uma mistura entre o material e o espiritual: “Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca”. (MALINOWSKI, 1978, p. 212).
Dinâmica semelhante ocorre dentro do ambiente do jogo: se os gamers concordam em participar da pesquisa, buscamos retribuir a gentileza, oferecendo-lhes algo extremamente valioso para eles: visibilidade. Esse gesto fortalece nossas relações e marca a importância de se compreender as normas de conduta e os costumes sociais dentro dos grupos estudados. Diante dessa necessidade, o interacionismo simbólico se mostra como um caminho teórico de grande utilidade para a compreensão, não apenas da relação do sujeito com os outros, mas também para entender a relação dele consigo mesmo. A partir da obra “A representação do eu na vida cotidiana”, de Goffman (2007), se torna possível, por exemplo, analisar a dinâmica de construção da autoimagem nas redes sociais. De acordo com ele,
O indivíduo influencia o modo que os outros o verão pelas suas ações. Por vezes, agirá de forma teatral para dar uma determinada impressão para obter dos observadores respostas que lhe interesse, mas outras vezes poderá também estar atuando sem ter consciência disto. Muitas vezes não será ele que moldará seu comportamento, e sim seu grupo social ou tradição na qual pertença (GOFFMAN, 2007, p. 67).
Essa representação teatral da qual Goffman (2007) fala é claramente per-ceptível na exibição da imagem e do discurso de influenciadores nas diversas plataformas utilizadas por eles para a comunicação com seu público. A construção de uma imagem que atraia seguidores é uma regra básica para se obter sucesso no meio digital. Todavia, tanto na escrita da pesquisa quanto na veiculação de vídeos com entrevistas ou qualquer material que envolva sujeitos que atuam, de forma amadora ou profissional no ambiente digital, a preocupação com a ética deve estar presente. Nesse sentido, a obra Netnografia, de Robert Kozinets (2014), em capítulo intitulado “Realizando netnografia ética”, é um importante norteador para estudos que envolvam o ambiente digital. Mas, para além das recomendações de Kozinets (2014), outros caminhos vão sendo desenhados a partir da própria experiência e através das interações com esses sujeitos: uma recomendação prudente é sempre mostrar ao entrevistado o material produzido antes de publicar ou divulgar. Mesmo em situações quando eles possam sugerir alterações com as quais o pesquisador não concorda, atender aos seus pedidos é uma forma de entendimento da importância da construção de uma imagem que é sua ferramenta de trabalho. Trata-se de um ambiente em que um pequeno descuido do pesquisador pode ocasionar um grande prejuízo financeiro e até mesmo o cancelamento do sujeito da pesquisa. Em casos mais drásticos, pode levar ao suicídio.
Palavras-chave: Antropologia digital; etnografia digital; ética; metodologia de pesquisa; internet.
Referências:
ADAMS, T.; JONES, S. Holman; ELLIS, C. Autoethnography: Understanding Qualitative Research. Nova York: Oxford University Press, 2015.
HINE, Christine. Etnografía Virtual. Colección Nuevas Tecnologías y Sociedad).
Editorial UOC: tradução para o espanhol por Cristian P. Hormazábal, 2004.
KOZINETS, Robert. V. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso, 2014.
GOFFMAN, Erwin. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Tradução de Maria Celia Campos Raposo. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003.