Socorro! Tem literatura no meu feed!

Autores

  • Bianca Francischini Lisita Universidade Federal de São Carlos / Doutoranda

Palavras-chave:

Literatura Digital, Redes Sociais, Literatura Brasileira, Claudia Grechi Steiner, Só o Pó

Resumo

Já não é segredo que o campo artístico da literatura vem sendo constantemente alterado por conta das novas tecnologias. Desde autores da literatura impressa que descobriram uma maneira de se auto publicar, até as obras nativas digitais, as transformações ocorrem sem que muitos leitores percebam as consequências de tais mudanças. Essas mudanças são ainda mais evidentes em Follain (2010), quando o autor afirma que

toda a produção midiática moderna converge para o computador, que, funcionando como um metameio, a armazena e a distribui. Traduzidos em dados numéricos, filmes, fotografias, textos e músicas inserem-se numa rede não-hierárquica de circulação [...] O computador é, então, algo mais que um simples atravessador, ou operador de passagens, é o ponto de partida para a constituição de uma cultura eletrônica com características próprias, que redefine as relações entre os diversos campos da produção cultural. (FOLLAIN, 2010, p. 32)

A literatura eletrônica é descrita por Leonardo Flores em seu artigo “Literatura Eletrônica de Terceira Geração” como “uma arte centrada na escrita que envolve o potencial expressivo da mídia eletrônica e digital” (2021, p. 357), ou seja, toda e qualquer produção cultural que se utilize de meios digitais para veicular uma escrita específica que não se encaixa na linguagem ou no uso corriqueiro desses ambientes digitais. Essas características observadas na literatura eletrônica vão ao encontro das discussões trabalhadas por Santos e Sales (2011):

Na delimitação do campo literário, feita por críticos e teóricos, confundia-se predomínio com exclusividade da matéria verbal. Por conseguinte, quase sempre, as tentativas de propor conceitos e gêneros para as literaturas, passavam exclusivamente pelas estratégias associadas a essa matéria. Ora, nas últimas décadas, com as possibilidades abertas pelo digital, concretizou-se a utilização de diferentes elementos na criação literária.  (SANTOS E SALES, 2011, p. 18-19)

Contudo, pode ser que os dias de desconhecimento, referenciado no primeiro parágrafo, estejam contados graças às novas obras literárias digitais, que surgem a partir de velhos conhecidos das comunidades eletrônicas: as redes sociais. Em seu artigo, Flores (2021) nos convida a explorar a terceira geração caracterizando-as como aquelas produzidas a partir de 2005, que utilizam as plataformas já estabelecidas por grandes empresas e que são acessadas por uma quantidade massiva de usuários.

A partir das disposições colocadas por Flores (2021) é possível compreender mais facilmente o motivo pelo qual o desconhecimento sobre literatura eletrônica pode, de certo modo, estar com os dias contados. Se antes era necessário saber onde procurar pelas obras, a partir da terceira geração os leitores não mais precisam de um mapa para chegar ao tesouro, encontrando-o no próprio feed do leitor/usuário. Além de esse movimento auxiliar na descoberta das obras por aqueles que já conhecem a literatura eletrônica, ele também expande o alcance dessas obras para os usuários que nunca antes tiveram qualquer contato com esse tipo de produção cultural. Apesar dos esclarecimentos oferecidos por Flores (2021), resta ainda a frutífera curiosidade de observar e compreender o funcionamento das obras da terceira geração e, por conta disso, Claudia Grechi Steiner será nossa anfitriã nesse universo a partir de sua obra “Só o Pó” (2012). Tomando emprestada a argumentação feita por Rocha (2014) quando discorre sobre as dificuldades encontradas na pesquisa em literatura digital, é inegável a importância da investigação e descrição dessas obras, pois:

[...] se há especificidades no meio digital – e são elas que têm causado alterações substanciais nas práticas de leitura, literária ou não, na atualidade – elas devem ser abordadas e compreendidas a fim de que se compreendam, também, as especificidade dos objetos estéticos que surgem nesse meio. (ROCHA, 2014, p. 173)

Segundo a própria autora, “Só o Pó” (2012) é o “primeiro livro brasileiro em forma de série a usar o Facebook como plataforma de publicação, explorando seus recursos com textos, fotos e vídeos”[1]. Jornalista e autora de outros livros em e-book, Steiner iniciou as publicações da obra em 6 de julho de 2012 em uma página do Facebook criada exclusivamente para hospedar a obra[2]. Contando hoje com cerca de 4,3 mil seguidores, assim que acessamos a página podemos ler uma pequena apresentação feita pela própria autora, identificando as intenções por trás da página, onde se diz: “Só o pó é um romance escrito e idealizado por Claudia Grechi Steiner para ser originalmente publicado no Facebook, em capítulos.”[3] A utilização da plataforma Facebook como medium da obra alcança os escritos de Arlindo Machado (2007) que levanta a questão da desprogramação da técnica.

O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina ou do programa que ele utiliza, é manejá-los no sentido contrário ao de sua produtividade programada. Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. (MACHADO, 2007, p. 14)

A leitura da obra pode ser feita de diversas formas, considerando-se a não-linearidade da mesma. Portanto, cabe ao leitor explorar as postagens feitas no feed e também ir até os álbuns de fotografia disponíveis. A obra é formada por postagens feitas por 4 personagens diferentes que conversam exclusivamente pelo Facebook e cada uma das postagens acompanha primeiro o nome do personagem que está fazendo a postagem e é seguido por um texto, um vídeo de música, um vídeo produzido pelo personagem ou uma imagem. A interação entre os personagens não fica somente nas postagens próprias de cada um, mas também nas respostas à postagem original feitas por outros personagens.

As postagens mais curtas do feed tem o objetivo de demonstrar a personalidade de cada personagem e também a maneira que eles interagem entre si, tudo isso feito através do compartilhamento de pensamentos, gostos musicais e piadas. Essas postagens são, na verdade, aquilo que mais vai condizer com as descrições feitas por Flores (2021) sobre a literatura eletrônica de terceira geração, afinal, a narrativa e o funcionamento da mesma desenvolvem-se a partir das ferramentas específicas do medium[4], integrando-se completamente ao espaço do cotidiano.

Nenhum texto em rede pode solicitar um espaço próprio para si. A literatura não se distancia das tarefas “cotidianas”, não há lugar para um “espaço literário”. Não há espaço senão para a diferenciação em zonas, com transições incertas entre si. (LADDAGA ,2002, p. 24)

Contudo, existe ainda mais um modo pelo qual a autora veiculou essa narrativa, que foi a partir da postagem de capítulos contendo histórias estreladas pelos quatro personagens e, a cada capítulo, compreendemos mais sobre a vida e o relacionamento de cada um. Essas postagens mais específicas foram as escolhidas para serem transformadas no e-book da obra, lançado em 2013, que com isso, é formada somente pelas postagens desses capítulos e algumas imagens ilustrativas.

Faz-se necessário trazer à tona o questionamento da manutenção e conservação da obra, pois não só existe o problema de a plataforma não entregar as postagens mais antigas mas, para além disso, sendo pertencente a uma empresa privada, é muito provável que, eventualmente, o site em questão saia do ar sem avisos prévios ou que a conta onde a obra está alocada seja perdida, entre outros problemas que poderiam causar a perda completa da experiência de leitura da obra, que assim como vimos anteriormente, apesar de contar com e-books com trechos específicos da narrativa, de maneira alguma o medium impresso poderia substituir a experiência completa oferecida pela obra original, tendo em vista que o e-book é capaz de conter apenas os trechos que mais se aproximam do funcionamento da literatura impressa, como a separação em capítulos por exemplo. Esse problema se estende inclusive aos vídeos produzidos pela própria autora que estão alocados em outro site, o Youtube, incluindo as postagens contendo vídeos musicais da mesma plataforma. Ainda que o próprio Facebook permaneça, a possível exclusão de qualquer conteúdo dessa outra plataforma pode acabar impactando diretamente na obra original, não restando possibilidade de recuperar aquilo que foi perdido. Diante disso, mesmo em projetos de mapeamento e documentação de literatura eletrônica, como por exemplo o caso do Observatório da Literatura Digital Brasileira[5] , a problemática da perda do acesso à essas obras está diretamente ligada aos mediums pelos quais nós as acessamos, afinal:

Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de que são os veículos. Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente da construção de seus significados. O “mesmo” texto, fixado em letras, não é o “mesmo” caso mudem os dispositivos de sua escrita e de sua comunicação. (CHARTIER, 2002, p. 61-62)

Em conclusão, a literatura eletrônica de terceira geração apresenta um grande potencial em expandir-se a partir das redes sociais onde estão alocadas, alcançando um público que talvez nunca tivesse contato com esse tipo de produção, contudo, assim como vimos na obra de Steiner, com grandes poderes surgem grandes responsabilidades. Apesar de seu poder de difusão a literatura digital de terceira geração terá de encarar também os desafios específicos das plataformas digitais que não demonstram a menor preocupação na manutenção das obras criadas a partir de suas redes. A partir disso, faz-se ainda mais importante o estudo, catalogação e historicização dessas obras feitos pelos pesquisadores da área da literatura para que, talvez, seja possível manter vivo ao menos alguns registros dessas obras.

 

[1] Disponível em: https://e-galaxia.com.br/authorbook/claudia-grechi-steiner/ Acesso em: 12 out. 2024.

[2] Disponível em: https://www.facebook.com/livrosoopo Acesso em: 12 out. 2024.

[3] Disponível em: https://www.facebook.com/livrosoopo. Acesso em: 12 out. 2024.

[4] Em Rancière (2016, p.33): “A palavra «medium» entende-se, em princípio, como «o que permanece entre»: entre uma ideia e a sua realização, entre uma coisa e a sua reprodução. O medium aparece assim como um intermediário, como um meio para um fim ou o agente de uma operação.”

[5] Disponível em: https://www.observatorioldigital.ufscar.br/. Acesso em: 15 out. 2024.

Publicado

02-12-2024