Transformação e resistência
a comunicação das periferias de São Paulo em tempos de crise climática.
Palavras-chave:
Comunicação e Transformação Social, Cartografias de Imaginários e Poder, Gerando Falcões, PerifaConnection, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONUResumo
Este artigo investiga como os fenômenos de comunicação em hipermídia, desenvolvidos em projetos liderados pela comunidade periférica, emergem como formas de resistência e reivindicação de direitos, buscando transformar realidades sociais. Focamos nos processos comunicativos de dois grupos: PerifaConnection e Gerando Falcões. Essas entidades organizam esforços coletivos que envolvem diversos atores, utilizando perfis em redes sociais e websites para promover a mobilização social e política.
Partindo do pressuposto de que o imaginário é um campo dinâmico, onde significações podem ser continuamente criadas e reconfiguradas, nosso argumento é que as iniciativas em questão, ao promoverem espaços dialógicos, partilha e disputas de narrativas, arquivos de memória e construção de identidades, proporcionam condições para o questionamento e redefinição das condições sociais vigentes. Nesse sentido, o artigo visa contribuir para a construção de cartografias de imaginários que emergem a partir das dinâmicas e das interações em redes dos grupos.
A análise dos processos de comunicação dos dois projetos selecionados será desenvolvida a partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Os ODS selecionados – Erradicação da pobreza (ODS 1), Saúde e bem-estar (ODS 3), Educação de Qualidade (ODS 4), Redução das desigualdades (ODS 10), Cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11) e Ação contra a mudança global do clima (ODS 13) – servem como critérios para examinar como esses movimentos de resistência abordam essa agenda. A inclusão do ODS 4 ressalta a importância da educação de qualidade como um eixo central para o empoderamento das populações periféricas, destacando o papel da educação como ferramenta de transformação social e inclusão em suas respectivas iniciativas comunicacionais.
A fundamentação teórica é estruturada em quatro eixos principais: 1) autores que discutem crescimento urbano, exclusão social e especulação imobiliária (ROLNIK, 2015; SANTOS, 1993; HARVEY, 2014); 2) estudiosos que analisam a desigualdade social e a vulnerabilidade ambiental na Grande São Paulo (RIBEIRO, 2008); 3) a análise da linguagem da hipermídia e do poder nas redes sociais, com base em Leão (2001, 2023), Nunes (2018) e Castells (2006); e 4) estudos do imaginário em Durand (1988) e Castoríades (1990) e a aplicação do método de cartografias (LEÃO et all, 2023).
O crescimento demográfico e urbano da cidade de São Paulo, especialmente no século passado, revela padrões de expansão que deslocam populações historicamente marginalizadas. Fatores como especulação imobiliária, discriminação e a insuficiência de políticas públicas perpetuam uma lógica de exclusão social, inviabilizando o acesso à moradia na região central e impulsionando a expansão das áreas periféricas.
A discussão sobre as dinâmicas do crescimento urbano e da exclusão social é enriquecida por autores como Rolnik (2015), que destaca o impacto do mercado financeiro na habitação, e Harvey (2014), que introduz o conceito de 'direito à cidade'. Juntas, essas perspectivas ajudam a compreender como a urbanização, mediada por processos de exclusão, resulta em profundas desigualdades estruturais, que se agravam pela ausência de políticas públicas adequadas.
Na Grande São Paulo, eventos climáticos extremos e doenças mostram uma vulnerabilidade diferenciada, com as regiões mais afetadas concentrando populações de baixa renda (ALVES, 2007). Essa realidade evidencia que a crise climática acentua desigualdades socioeconômicas pré-existentes, exigindo uma resposta urgente para garantir justiça social e ambiental.
PerifaConnection
O PerifaConnection, projeto criado em 2019 por jovens oriundos das periferias do Rio de Janeiro, se autodenomina como “corpo das periferias do Brasil”. Esta iniciativa visa conectar e potencializar as juventudes, promovendo um espaço de debate sobre direitos humanos, justiça social e os impactos da discriminação, além do racismo ambiental.
Por meio de projetos como o Lab Clima, desenvolvido em parceria com o Instituto Clima e Sociedade (iCS), o PerifaConnection aborda questões relevantes vinculadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com ênfase no ODS 13, que trata da Ação contra a mudança global do clima. O Lab Clima proporcionou formações sobre mudanças climáticas e explorou temas interdisciplinares, como gentrificação e mobilidade urbana, resultando na elaboração de projetos de comunicação que refletem o aprendizado e a capacitação dos participantes.
O PerifaConnection se destacou ao acompanhar as Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COPs) nos últimos três anos, utilizando sua presença nas redes sociais, particularmente no Instagram, para divulgar conteúdos acessíveis e realizar traduções de discursos técnicos, ampliando assim o alcance das discussões climáticas. A participação do PerifaConnection em eventos como a COP 26 sublinha a necessidade de incluir vozes periféricas nos debates globais sobre mudanças climáticas, uma temática cada vez mais relevante na agenda internacional.
Além de sua cobertura nas redes sociais, o PerifaConnection demonstrou um engajamento ativo em painéis oficiais durante as COPs 27 e 28, gerando mais de 60 postagens na COP 26 e mais de 30 nas edições subsequentes. A plataforma também promove iniciativas alinhadas aos ODS 1 (Erradicação da pobreza), 10 (Redução das desigualdades) e 5 (Igualdade de gênero), como os projetos Lab Afro e Lab Mulher. Esses programas discutem temas pertinentes à cultura afro-brasileira e às desigualdades de gênero, contribuindo para o empoderamento das comunidades periféricas.
Ademais, o PerifaConnection mantém colunas em publicações de destaque, como o Estadão Express e a Folha de São Paulo, o que não apenas amplia sua visibilidade na mídia, mas também influencia de maneira significativa a discussão pública em torno de questões sociais, climáticas e de direitos humanos. Essa abordagem multifacetada revela o potencial do PerifaConnection como uma agente transformador nas narrativas que permeiam as periferias, desafiando estigmas e propondo alternativas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Gerando Falcões
Gerando Falcões é descrito como um "ecossistema de desenvolvimento social", caracterizando-se como uma estrutura dinâmica que interconecta mais de 2.000 Organizações Não Governamentais (ONGs) comprometidas com a transformação das realidades de, pelo menos, 6.000 comunidades periféricas e favelas em todo o Brasil. Fundada em 2011 por Eduardo Lyra, um residente da periferia, essa iniciativa social desempenha um papel crucial na promoção da inclusão e no fortalecimento de redes de apoio, com o objetivo de combater as desigualdades sociais. A atuação do Gerando Falcões reflete uma abordagem abrangente e colaborativa, buscando não apenas a mitigação de problemas sociais, mas também a criação de condições sustentáveis para o desenvolvimento dessas comunidades.
O site do projeto demonstra domínio no uso da linguagem da hipermídia, integrando textos, infográficos, fotografias e vídeos de maneira coesa, com uma organização que facilita a navegação e promove uma experiência intuitiva. O design gráfico e tipográfico também é digno de nota e contribui para tornar a interação com os conteúdos comunicacionais acessível e coerente.
Esse cuidado com a hipermídia não apenas facilita o acesso à informação, mas também favorece e incentiva o engajamento do público com os projetos da plataforma, que incluem iniciativas como Falcons University, Decolagem, Favela 3D e Asmara. A qualidade estética e a clareza na apresentação dos dados são aspectos fundamentais que, conforme argumentam vários autores, contribuem para a eficácia da comunicação em um mundo saturado de informações (TUFTE, 1994; LEÃO, 1997; MANOVICH, 2001).
O discurso do Gerando Falcões, manifestado em seu website e nas publicações nas redes sociais, ressalta tanto a necessidade quanto a viabilidade da transformação das realidades dos indivíduos periféricos e, por conseguinte, de suas comunidades. Essa transformação é facilitada por meio de projetos que se fundamentam na divulgação de estudos, dados e narrativas, elementos que corroboram a teoria da comunicação participativa, conforme defendido por Servaes e Malikhao (2005).
Na nossa análise, dirigimos especial atenção aos vídeos produzidos, que se caracterizam por uma construção rica em roteiro e especificidades imagéticas. Esses elementos videográficos conferem uma potência à narrativa da plataforma, cuja intenção é evidenciar a força da comunidade periférica e convidar investimentos para seus projetos. As imagens não apenas complementam as mensagens, mas a potencializam, permitindo interações mais profundas e facilitando a conexão emocional do público com as realidades apresentadas (BAITELLO, 2014; DURAND, 1998).
Discussão
A pesquisa realizada demonstra que os processos de comunicação adotados pelas iniciativas PerifaConnection e Gerando Falcões constituem um espaço insurgente e transformador. Esses projetos não apenas informam e mobilizam populações marginalizadas, mas também intervêm em arenas de poder, como nas Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, traduzindo discursos técnicos para linguagens acessíveis e promovendo conscientização sobre justiça social e ambiental.
A articulação entre o uso das redes sociais e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU demonstra a capacidade desses projetos de conectar demandas locais a agendas globais, destacando a importância das narrativas periféricas na luta por direitos. As iniciativas analisadas revelam uma comunicação eficaz, que não apenas resiste à exclusão social, mas transforma realidades concretas ao criar espaços de diálogo e promover a conscientização sobre questões cruciais para o século XXI. Não por acaso, Flusser dedicou grande espaço em suas discussões sobre o poder do diálogo na comunicação (Flusser, 2008).
Por fim, a aplicação do método de cartografias de imaginários (LEÃO, 2019) no estudo dos projetos Gerando Falcões e PerifaConnection oferece um caminho para o desvelamento das complexidades sociais enfrentadas pelas comunidades periféricas, abrindo novas perspectivas para ação e transformação social. As cartografias desempenham um papel essencial ao fortalecer estratégias comunicativas que, ao visibilizarem as experiências e desafios desses grupos, contestam estigmas e preconceitos profundamente enraizados. Dessa forma, nosso estudo evidencia que os projetos analisados transcendem os limites que os relatos das condições de vida nas favelas nos impõem. Em suas dinâmicas, os projetos que elegemos para o estudo agenciam a construção de narrativas não-hegemônicas, redimensionam perspectivas e desmantelam imaginários monolíticos. Esses projetos acionam reconfigurações da imagem das periferias, engajando diversos públicos e reforçando a legitimidade dessas vozes na esfera pública e a importância da criatividade e do domínio dos processos comunicacionais nas lutas pelos direitos.