Humanidades científicas e digitais, interdisciplinaridade e a formação de educadores e profissionais de TIC
Palavras-chave:
Humanidades científicas e digitais; interdisciplinaridade ; teoria ator-rede; tecnologias da informação e comunicação.Resumo
A pesquisa, ainda em curso, apresenta uma análise das possibilidades de aplicação de um modelo de intervenção pedagógica e formativa a partir do paradigma das Humanidades Científicas e Digitais. É de abordagem qualitativa, de caráter exploratório, e utiliza como métodos o estudo de caso e a pesquisa documental e bibliográfica. Seu objetivo é identificar como as Humanidades Científicas e Digitais podem operar como uma abordagem interdisciplinar de caráter inovador na formação tanto de profissionais de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) quanto de educadores. Parte do pressuposto que, na atual conjuntura, práticas formativas efetivas precisam levar em conta perspectivas trans e interdisciplinares. No que se refere à prática educacional, é preciso construir uma via de mão dupla. Os profissionais de TIC precisam de uma formação adequada que lhes possibilite reconhecer os impactos sociais, políticos e éticos de sua atuação. Por outro lado, os profissionais da Educação, sobretudo os que atuam na Educação Básica, precisam de um modelo formativo que trate o uso de tecnologias digitais como uma prática integrada à atuação docente e não apenas como um instrumental pouco conectado à intencionalidade pedagógica. Nesse contexto, a pesquisa visa analisar os conceitos da Teoria Ator-Rede (TAR), como formulados por Bruno Latour, na formação de um modelo de intervenção formativa que estimule práticas trans e interdisciplinares em um curso de graduação em Tecnologias da Informação e Comunicação. A graduação em TIC (UFSC/Araranguá), curso composto de três áreas (Tecnologia Computacional, Gestão, Tecnologia Educacional) objetiva formar profissionais competentes na área de Computação Aplicada, que não apenas desenvolvam tecnologias, mas que sejam capazes de aplicá-las de maneira crítica e efetiva nas mais diversas organizações, incluídas as educacionais. Além disso, o Programa de Pós-Graduação de Tecnologias da Informação e Comunicação, composto em sua maioria por professores vinculados ao bacharelado em TIC, desde sua constituição há 10 anos, tem sido espaço de aprofundamento teórico tanto dos egressos do TIC quanto dos profissionais da Educação Básica da região. Assim, práticas trans e interdisciplinares são o objetivo e a realidade da pesquisa e formação nesses espaços. A TAR pode ser aplicada como um modelo teórico que media o letramento em Humanidades Científicas e Digitais de tais profissionais em formação, bem como método de investigação desses processos e práticas interdisciplinares. A TAR dispõe de ferramentas metodológicas robustas, que possibilitam uma acurada análise das relações entre humanos e não-humanos. No mundo da Cultura Digital, tais relações caminham cada vez mais para a hibridização corpo-máquina (Santaella, 2004). Essa hibridização não ocorre tanto na forma do imaginário transhumanista e distópico (Latour, 2012), embora tal direcionamento não seja impossível. Na realidade experienciada por educadores e profissionais de TIC, essa hibridização ocorre como desenvolvimento de amplas ecologias comunicacionais (Santaella, 2010) e por redes de interações sempre mais complexas. Os conceitos de rede, actantes, atores, mediação e coletivos, que compõem a infralinguagem operacional da TAR (Latour, 2012) se mostram eficientes na descrição de variados processos que, em geral, recebem a rubrica de “sociais”. Entre esses, destacam-se as pesquisas sobre o processo ensino-aprendizagem e dos espaços educativos (Borges, Moura, 2023; Nunes, 2024) . A TAR pode, por conseguinte, colaborar na descrição das dinâmicas interativas entre as Humanidades Científicas e Digitais, a Educação e as TIC. Para tal, é necessário compreender as implicações epistemológicas em tais projetos interdisciplinares. Nesses casos, as separações e “purificações” da Ciência Moderna precisam ser revistas. Em “Políticas da Natureza” (2019a), Latour assinala para a impossibilidade de sustentar uma divisão entre a Ciência Moderna, termo que visa sobretudo as Ciências Naturais e Exatas, e as práticas sociais, éticas e políticas, relegadas às Ciências Humanas e Sociais, como dotadas de um estatuto epistemológico secundário. A TAR, em sentido contrário, indica o quanto a chamada Modernidade foi constituída por tensionamentos ontológicos, hibridizações (2019b). Assim, uma primeira aproximação da definição de Humanidades Científicas e Digitais aponta para a instabilidade ontológica e epistemológica que constitui a Modernidade ocidental-europeia. O fosso que se abriu entre a Ciência e a “sociedade” (termo que por si mesmo merece investigação), entre o campo da determinação mecânica e da liberdade ética, da política e da natureza, da tecnologia e das humanidades, do humano e do não-humano simplesmente não se sustenta. Esse ímpeto por “purificação” chega ao interior da própria Ciência moderna, se refletindo em uma diferenciação feita entre a pesquisa científica, como uma descrição adequada da natureza, e a tecnologia, como prática, aplicação, intervenção e transformação dos objetos. Tampouco essa cisão é sustentável, fato que leva Latour (2011) a preferir o termo “tecnociência”. A própria descrição de mundo feita pela Ciência pressupõe concepções metafísicas e ontológicas que se recusa reconhecer, como a de um único real, uniforme, do qual o método científico seria uma descrição neutra. Mais recentemente, no outro lado do espectro da Modernidade, Latour (2012, 2019b) identifica os chamados pensadores pós-modernos que reduzem a complexidade do real ao problema da linguagem. Sem que percebam, acabam repetindo a perspectiva reducionista da Ciência moderna, tratando o real como um bloco uniforme, ainda que em certa medida incognoscível, do qual os vários saberes seriam variações discursivas de sua apropriação. Para Latour, ambas as posições incorrem na mesma falta metodológica, que é pressupor uma coerência uniforme do próprio real. A saída onto-epistemológica da Teoria Ator-Rede não é negar toda e qualquer diferença. Ciências Humanas e Ciências Naturais não são a mesma coisa. A Matemática não é o mesmo saber que a Epistemologia. A compreensão da “natureza” não é apenas um fato social. Ao contrário, é a pressuposição de uma coerência ontológica fundamental do real que leva ao paroxismo de querer, ao mesmo tempo, separar dimensões dos seres como incomensuráveis e tratar toda forma de conhecimento como redutível a um único princípio regulador. A saída para o problema passa pela pluralização não apenas das formas de conhecimento, mas do próprio real, que deve ser visto não mais como um universo reducionista, mas como um pluriverso de possibilidades ontológicas. Fato que tanto cientistas naturais quanto sociais se recusam a aceitar, a análise da complexidade do real não pode abrir mão da ontologia e da metafísica (Latour, 2019c). Partir para uma concepção de Ciência moderna que relega as associações entre os coletivos a um estatuto epistemológico secundário, ou cair no vício pós-moderno e reduzir tudo a questões de linguagem, sem partir de uma análise da pluralidade de metafísicas que os próprios atores utilizam na descrição de suas ações e interações é pressupor que “a mobília do mundo” já foi descrita (Latour, 2012, 2019c). Assim, para Latour (2019a), é necessário passar da “Ciência”, moderna e maiúscula, para as “ciências”. Estas já não se propõem como sistemas totalizantes de mundo, mas aderem à tarefa de descrever da maneira mais adequada possível os modos de existência e a pluralidade de seres desse real também pluralizado. Isso não elimina a diferença, ao contrário, lhe dá um estatuto epistemológico mais eficiente (2019c). O discurso das Ciências Naturais não pode ser reduzido a fato sociológico, todavia, tampouco a forma de associação entre atores humanos e não-humanos pode ser reduzida a fato natural. O modo de veridiccção de cada forma de saber, o seu modo de dizer a verdade, será diferente, não porque a verdade seja banida para um limbo epistemológico de indiscernibilidade, mas porque deve aderir a formas diferentes de existência. É isso o que permite identificar, por exemplo, como em um laboratório fatos jurídicos, econômicos, políticos, científicos, artísticos interagem sem serem por isso reduzidos à indiferença epistemológica (Latour, 2017, 2019c). No âmbito da Cultura Digital, um período histórico marcado pela digitalização dos dados e da própria identidade pessoal (Santaella, 2016, 2021), essas tensões ganham outras formas e combinações. Se para Latour, a sociedade moderna ocidental-europeia se formou na tensão entre a Filosofia Política de Hobbes e a máquina de vácuo de Galton (2019b), o mundo plataformizado atual se tensiona entre o avanço das Tecnologias da Informação e Comunicação e formas de cidadania digital (Di Felice, 2020). Vive-se uma crise que é da ideia de democracia ocidental (Di Felice, 2020) e também da confiabilidade do discurso científico (Latour, 2019a). Como o grande mediador dessas tensões, a pluralização de formas tecnológicas que, inclusive, colocam em xeque a velha ontologia do sujeito moderno: redes sociais digitais, big data, inteligência artificial. O letramento digital se torna mais que uma ferramenta de otimização de processos organizacionais, mas uma conditio sine qua non da própria leitura do mundo. Ou melhor, dos mundos. A crítica da Ciência moderna e da Tecnologia, ou mais precisamente, da Tecnociência, não é uma destituição, mas uma reorientação que visa pôr as diversas formas de conhecimento a serviço de novas maneiras de fazer política, que consideram não apenas os atores humanos, mas os não-humanos e, em última instância, a própria sobrevivência de Gaia, o mundo habitável que humanos e não-humanos compartilham (Latour, 2020). Nesse sentido, justifica-se, por exemplo, que um curso de graduação em TIC, para além da formação técnico-científica competente, vise “estimular postura crítica, ética e social no tratamento das Tecnologias da Informação e Comunicação” (Fiuza et al., 2017). Da mesma maneira, a formação de um educador deve contar com o letramento científico e digital como um pressuposto básico de sua intervenção pedagógica na complexa rede de formação dos sujeitos contemporâneos imersos e constituídos por esses tensionamentos. O conceito de Humanidades Científicas e Digitais aqui pensado a partir da TAR tem dois direcionamentos. Por um lado, recupera as razões de confiabilidade e da importância das ciências na construção de mundos habitáveis comuns (Latour, 2017, 2019a). Por outro, questiona “essa ideia de autonomia das ciências e das técnicas” (Latour, 2016). No estudo de caso utilizado, mostram-se duas práticas como aplicações de princípios das Humanidades Científicas e Digitais já ocorrem nos cursos de Bacharelado e Pós-Graduação em TIC da UFSC Araranguá, embora seu ponto de partida teórico não seja necessariamente a TAR. Na graduação, a disciplina de Redes Sociais e Virtuais, ministrada pelo pesquisador nos anos de 2022 a 2024, foi utilizada como espaço de crítica à autonomia da “tecnociência” reorientando os alunos para a compreensão e análise das amplas redes que constituem o saber técnico no qual se formam. A disciplina, que visa apresentar conceitos, modelagens de desenvolvimento, e aplicação de Redes Sociais Digitais nas organizações, parte de uma noção mais ampla, servindo como espaço de análise da posição do profissional de TIC frente a desafios sociais, culturais, econômicos, ambientais e políticos, pelos quais sua formação é atravessada e sobre os quais sua prática profissional incide. Outra prática de Humanidades Científicas e Digitais são os trabalhos conjuntos entre os profissionais de TIC e professores da Rede Básica que são pesquisadores integrados ao RexLab, Laboratório de Experimentação Remota, do qual o pesquisador também participa. Ali, professores do Laboratório, graduandos, pesquisadores em formação na pós-graduação vindos do TIC ou das licenciaturas, promovem práticas de formação, pesquisa, produção e intervenção no espaço escolar que visam o letramento digital, pensamento computacional, robótica, programação, entre outros. A separação artificial da Modernidade entre saberes tomados como opostos, no RexLab é substituída pelo objetivo de “atender a necessidade de apropriação social da ciência e tecnologia” (RexLab, 2024). As Humanidades Científicas e Digitais compreendidas na ótica da TAR podem colaborar a descrever melhor essas práticas e a produzir metodologias mais eficientes para essas intervenções.