Políticas corporativas, game e dromoaptidão

Um estudo sobre segregação de gênero no meio competitivo de jogos online no Brasil

Autores

  • Taís Mendes Heise PUC SP

Palavras-chave:

videogaem, gênero, inclusão, comunicação digital

Resumo

O objetivo deste estudo é investigar como políticas de inclusão, que visam proporcionar igualdade de oportunidades, frequentemente resultam em exclusão, reforçando barreiras para os próprios grupos que buscam integrar. Essa análise é particularmente relevante ao considerarmos os videogames não apenas como espaço de entretenimento, mas um refúgio importante, especialmente durante eventos climáticos extremos[1]. Esses momentos de crise trazem impacto significativo na vida das pessoas, muitas vezes forçando-as a buscar alívio e apoio emocional em ambientes digitais. Em situações de eventos climáticos severos, onde as interações sociais físicas são limitadas, os videogames e suas comunidades emergem como um meio de conexão e pertencimento, oferecendo um espaço onde os indivíduos podem se distrair, interagir e formar comunidades de apoio.

Historicamente, o mundo dos games tem sido caracterizado por uma predominância masculina, tanto em sua criação quanto em seu consumo. Essa masculinidade se manifesta em uma série de normas culturais e estereótipos que perpetuam a ideia de que os jogos e a cultura gamer são domínios masculinos. Por mais que haja tentativas de promover a igualdade por meio de políticas de inclusão, essas iniciativas muitas vezes se deparam com a resistência de um ambiente que ainda valoriza o masculino como o padrão. Os campeonatos inclusivos são um esforço de empresas de jogos para ajudar mulheres e pessoas não-binárias encontrarem espaço no universo dos jogos. Eles funcionam de uma maneira relativamente excludente, apesar do nome “inclusivo”, uma vez que proíbem certas pessoas de participarem deles. Nesse contexto, as políticas de inclusão devem ir além de meramente abrir espaço; elas precisam considerar as experiências vividas por aqueles que historicamente foram marginalizados e trabalhar para transformar a cultura gamer em um ambiente verdadeiramente acolhedor e inclusivo.

Assim, pode-se dizer que essas políticas inclusivas em games geram efeitos perversos, como os descritos por Raymond Boudon. Os efeitos perversos referem-se a consequências indesejadas que surgem da combinação de ações individuais. Essas dinâmicas desafiam a previsibilidade social e revelam que, mesmo quando as intenções são benéficas, as implementações podem levar a resultados contrários ao esperado. Por exemplo, a tentativa de aumentar a participação de grupos sub-representados nas competições de e-sports (jogos virtuais como esporte competitivo), ao segmentar os jogadores por gênero, pode, paradoxalmente, reforçar a percepção de que esses grupos não são capazes de competir em pé de igualdade.

Para exemplificar esses efeitos no contexto dos videogames, observamos que políticas de inclusão de gênero, como as implementadas pela Riot Games, criaram competições específicas para jogadoras, como a Ignis Cup e o Game Changers. Embora essas iniciativas promovam a participação de mulheres no cenário competitivo, elas são frequentemente relegadas a horários menos visíveis e dias de menor engajamento, o que limita o reconhecimento e o patrocínio das participantes. Esse tipo de segmentação pode perpetuar a noção de que mulheres e outros grupos não têm a mesma capacidade de competir na categoria principal, o que contraria o próprio objetivo da inclusão ao gerar exclusão. Casos como o da jogadora "meL", que teve sua participação em eventos mistos limitada, e o da jogadora "Noot Noot", envolvida em um caso de trapaça, destacam falhas nessas políticas e a necessidade de uma reflexão sobre como a inclusão pode ser implementada de forma mais equitativa.

Pensando na exclusão em ambientes digitais, é importante entender o conceito de preconceito relacionado a dromoaptidão. Essa noção denota a capacidade de ser rápido, reflete um novo tipo de preconceito emergente na sociedade do conhecimento. Na transição para essa sociedade, a exclusão passa a ser pautada não mais em atributos físicos, mas na capacidade cognitiva e emocional de atender a exigências de agilidade e resiliência. Essa mudança de paradigma afeta diretamente as dinâmicas de inclusão e exclusão nos jogos eletrônicos, onde mulheres e outros grupos minoritários enfrentam julgamentos sobre suas habilidades psíquicas e estratégicas, muitas vezes rotuladas como menos aptas para esse ambiente.

Esses processos discriminatórios se somam aos efeitos perversos das políticas de inclusão, que criam divisões onde a competição deveria ser igualitária e reforçam estereótipos de gênero no ambiente digital. A exclusão que se insinua nessas políticas inclusivas encontra eco nas perspectivas de gênero desenvolvidas por autores como Judith Butler, Simone de Beauvoir e Julia Kristeva. Butler argumenta que o gênero é performativo, uma construção contínua sustentada por normas culturais, sugerindo que a identidade de gênero não é fixa e pode ser ressignificada pela própria performance. Essa visão propõe uma subversão das normas de gênero como um caminho para a liberdade individual e a justiça social. Beauvoir, por sua vez, enfatiza que as mulheres historicamente ocupam a posição de “Outro” em relação ao homem, uma distinção culturalmente construída e reforçada por políticas que mantêm as mulheres à margem, mesmo sob o pretexto da inclusão. A emancipação, segundo Beauvoir, pode ser alcançada por meio de educação e participação política, promovendo uma consciência crítica da condição feminina. Kristeva, com sua visão psicanalítica, aborda a influência da linguagem na formação da identidade de gênero, revelando como as normas culturais sustentam práticas que segmentam as mulheres em um “lugar” específico.

Essas discussões são importantes para entender alguns casos no cenário inclusivo de e-sports. O caso de “sRN”, uma jogadora de Valorant que se identifica como não-binário e venceu prêmios femininos, levantou questionamentos sobre os limites das políticas inclusivas e a perda de espaço para jogadoras cisgênero, debate chegou a ser pauta com os deputados Nikolas Ferreira e Erika Hilton. Outro incidente relevante envolveu um time de homens trans que foi impedido de participar de um torneio inclusivo, revelando lacunas nas políticas de inclusão. A jogadora “Flower”, de League of Legends, também enfrentou discriminação por sua identidade de gênero, complicando a questão com revelações sobre sua autoafirmação. Esses casos destacam a dificuldade de equilibrar a promoção da diversidade e a integridade competitiva nos e-sports, onde a verificação de gênero se torna um dilema ético, uma vez que não existem barreiras físicas entre os gêneros.

Tais incidentes reforçam a dificuldade de equilibrar a promoção de diversidade com a integridade competitiva nos e-sports, onde a inclusão, em vez de criar um espaço mais justo, acaba expondo as limitações das políticas segregacionistas. Assim, embora as intenções sejam positivas, as práticas atuais da Riot Games e de outras organizações podem deixar as jogadoras em categorias separadas, sem oportunidades reais de ascensão no cenário competitivo. Portanto, em uma sociedade cada vez mais conectada e dependente da comunicação digital, compreender essas dinâmicas de segregação e inclusão é fundamental para reavaliar o conceito de uma “sociedade utópica” na web. A justificativa para a realização deste estudo está na relevância de investigar como a segregação de gênero e as relações de poder se manifestam na sociedade digital e como esses fatores podem influenciar diretamente a construção de identidades e a sensação de pertencimento. Essa compreensão é crucial, pois permite que possamos desafiar as normas existentes e trabalhar para um futuro onde todos, independentemente de gênero, possam competir em igualdade de condições, contribuindo assim para um ambiente mais justo e inclusivo nos videogames e além.

A relação entre políticas inclusivas e os efeitos excludentes que elas podem gerar é um tema cada vez mais relevante na atualidade, especialmente à luz das mudanças climáticas e de eventos extremos que afetam as comunidades. É imperativo que, ao implementar políticas que busquem a inclusão, se tenha em mente não apenas as intenções, mas também as consequências potenciais dessas ações. Em última análise, a promoção da inclusão deve ser acompanhada de um compromisso com a equidade real, que desafie as normas estabelecidas e abra espaço para um verdadeiro pertencimento e participação.

[1] Argumento elencado como tentativa de articulação argumentativa com o simpósio, para todos os critérios de pertinência, difícil com os temas discutidos no documento. Independentemente das demais que possam existir, a autoria entende ser legitima e viável para a discussão entre os paras sobre a hipótese de que esse contexto condicionara o aparecimento de insights e sugestões para essas novas conexões. Além disso, entre a proposição do resumo e a consolidação do texto, sob a mediação do debate entre pares, um esforço intelectivo para garantir essas conexões a temática geral do evento poderá ser suplementada juntamente com novos resultados.

Publicado

02-12-2024