Médicos em redes sociais: considerações iniciais sobre a criação de perfis profissionais e as determinações do Conselho Federal de Medicina
Palavras-chave:
Midiatização; plataformização; Conselho Federal de Medicina; redes sociais.Resumo
Espaço de apresentação da atuação de diversos profissionais, as redes sociais estão implicadas em variadas áreas sociais, como a do trabalho. Impregnadas pelo capitalismo neoliberal e pela performatividade algorítmica (Lemos, 2021a), plataformas, como principalmente o Instagram, são utilizadas para a realização da divulgação de médicos a partir da produção de conteúdos diversos, apoiados no perfil editorial que emprega: filmagem da rotina, apresentação do consultório, dicas de medicamentos, orientações sobre doenças e medidas protetivas etc. Neste contexto, parte-se para a divulgação da profissão através do digital por meio da divulgação de orientações informativas (e persuasivas) na tentativa de atrair o público a contratar o serviço em questão.
Neste sentido, o presente trabalho possui como tema a atuação de médicos no Instagram para a divulgação de suas atividades profissionais em diálogo com as determinações estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Para tanto, desenvolve sua reflexão considerando o atual contexto de midiatização (Couldry e Hepp, 2020; Fausto Neto, 2010; Véron, 2014), tomando-o como referencial que afeta diversos panoramas sociais – o etnopanorama, o tecnopanorama, o finançopanorama, o midiapanorama e o ideopanorama (Appadurai, 1990), além de ser atravessado pelos processos de plataformização e dataficação (Lemos, 2020, 2021a), os quais reconhecem que softwares e algoritmos, como o próprio Instagram, atuam "transformando comportamento e induzindo ações sobre o que se deve saber, fazer, comprar, com quem se relacionar, ou quais lugares e comidas conhecer" (Lemos, 2021b, p. 120) a partir do manejo dos "mercado de dados pessoais" no digital, como descreve Guimarães (2023).
É a partir desta ação que se estabelece o problema a ser debatido: qual o limite ético da realização de publicidade online pelo próprio médico para apresentação de seus serviços, especificamente, em seu Instagram? Tal questionamento permite que se apresente objetivo do trabalho: identificar e analisar os parâmetros legais, definidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), acerca da realização de publicidade online por médicos para divulgação de serviços provenientes de sua atuação profissional.
Um estudo desta natureza mostra-se relevante ao direcionar o olhar para a complexificação da comunicação contemporânea, em um cenário midiatizado, no qual a infodemia (Organização, 2020) precisa lidar com os desafios da desinformação, do negacionismo e do combate às fake news no contexto do neoliberalismo digitalizado a partir da crise confiança no sistema de peritos (Cesarino, 2021, 2022).
Pode-se refletir ainda sobre o modo como os sujeitos podem exercer as práticas de mediação cultural. Gomes e Hansen (2016) advogam a figuração dos "intelectuais mediadores" como responsáveis pela criação e produção de novos significados através da sua apropriação de ideias, textos, conhecimentos e saberes já preexistentes, ou seja, a divulgação de informações que são recebidas por um público não passivo e não necessariamente com conhecimento especializado suficiente para interpretar uma informação mal transmitida ou deturpada. Há, nesse caso, uma preocupação e reconhecimento da existência de alguém capaz de exercer essa função efetivamente. Contudo, ao aplicar essa concepção no âmbito da saúde midiatizado, o que se constata são profissionais médicos, alguns deles sem o devido preparo, mediando, intelectualmente, conteúdos nas redes sociais, dispensando – em alguns casos – as diretrizes que fiscalizam a disseminação de informações, já que algumas delas podem incluir ou consistem em fake news.
Metodologicamente, seguindo os preceitos de Minayo (2012), a pesquisa qualitativa permite desvelar os significados subjacentes aos documentos, permitindo, assim, uma reconstrução da trajetória histórica das políticas digitais, identificando as mudanças e as continuidades ao longo do tempo. Para tanto, a execução deste estudo faz-se necessário uma revisão bibliográfica (Godoy, 1995) com foco em estudos sobre a mediação tecnológica nas relações de trabalho e as normativas legais no campo digital brasileiro, considerando as implicações da midiatização e as formas de uso das redes sociais por profissionais médicos. Recorre-se ainda à análise documental da autora como forma de extrair informações relevantes de documentos oficiais na identificação de lacunas legais acerca da regulamentação da atuação médica em plataformas digitais, considerando os marcos legais brasileiros e as determinações do CFM advindas dessa jurisdição. Inicialmente, os documentos definidos para análise são a Resolução CFM nº 1974/2011 (Conselho, 2011) e a Resolução CFM nº 2.336/2023 (Conselho, 2023), documentos esses que determinam e estabelecem critérios norteadores referentes à publicidade e à propaganda médica, além de legislações correlatas e produções adjacentes, alguns deles determinados, por exemplo, pela Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos (CODAME), entre outros órgãos e entidades.
Considerando o uso do Instagram (e, eventualmente, de outras plataformas) por médicos para divulgação dos seus serviços, resta, unicamente, ao CFM regulamentar e fiscalizar o exercício ético da medicina neste canal digital. Na primeira Resolução sobre o tema – CFM nº 1974/2011 (Conselho, 2011) –, as redes sociais são abordadas brevemente em conjunto com a relação dos médicos com a imprensa, na participação em eventos e em matérias jornalísticas, deixando brechas sobre como deveria ser a conduta dentro das plataformas.
Em 2015, foram publicadas duas novas Resoluções, que se referiam a vetos para as redes sociais, a Resolução CFM nº 2126/2015 (Conselho, 2015a) apresenta os dizeres: “é vedado ao médico, na relação com a imprensa, na participação em eventos e no uso das redes sociais”. No mesmo ano, a Resolução CFM nº 2133/2015 (Conselho, 2015b) vem, posteriormente, apenas para corrigir esses dizeres por estarem provocando desentendimento, levando a uma nova redação, aqui transcrita: “é vedado ao médico, na relação com a imprensa, na participação em eventos e em matéria jornalística nas redes sociais”.
No ano seguinte, Martorell, Nascimento e Garrafa (2016) realizaram coleta de dados de 39 imagens publicadas por médicos e dentistas no Facebook. Neste episódio, os profissionais estavam ferindo o princípio de respeito à privacidade do paciente ao publicar registros pessoais em momentos delicados e sem suas respectivas autorizações. Até então, a Resolução vigente não abordava sobre tais assuntos.
Desde então, avanços tecnológicos ocorreram dentro das redes sociais, implicando na conduta médica a respeito da publicidade. O vínculo entre os profissionais da área de saúde e o paciente é fortalecido de tal modo que contribui para a propagação de conteúdos médicos na internet, independente do caráter da conduta. Mesmo diante de incidências, uma nova Resolução só é apresentada em 2023 – Resolução CFM 2.336/2023 (Conselho, 2023) –, dispondo sobre obrigações, permissões, proibições, deveres e direitos quanto ao comportamento de médicos nas redes sociais, constituindo-se como o primeiro documento a mencionar, especificamente, o respeito à divulgação em plataformas digitais, como WhatsApp, Instagram, Facebook e similares. Essa Resolução traz preocupações pertinentes, como o Capítulo II - das obrigações, Art. 4°, onde é mencionado que em peças de publicidade médica deve conter nome, número de registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) e Registro de Qualificação de Especialista (RQE) quando o possuir; o Art. 6° do mesmo Capítulo aponta a obrigatoriedade em expor tais informações na página principal do perfil em redes sociais, blogs e sites, como forma de garantir ao público o direito a informações profissionais do médico.
Em contraponto, acerca da comunicação desses profissionais, no documento é mencionado apenas no Capítulo III, Art. 8°§2 que, em suas redes próprias, é permitido a publicidade com o intuito de “dar conhecimento de informações para a sociedade”, deixando em aberto qualquer preocupação sólida com o conteúdo que está sendo mediado por esses profissionais. É esta lacuna que precisa ser foco de debate público pela sociedade brasileira, uma vez que os ciclos de produção e de disseminação de negacionismos, da desinformação e de fake news amparam-se em profissionais – alguns deles médicos – conscientes de suas criações e interessados na origem e destinação de suas discursividades, como forma de preencher o "espaço social" (Massey, 2008) no controverso contexto da "pós-verdade", uma vez que a discursividade expressa através das novas mídias materializa-se operando "em estreita coemergência com outra infraestrutura técnica e material – o corpo dos usuários humanos ou, mais especificamente, sua cognição encorpada" (Cesarino, 2022, p. 209).
Acionar tal estratégia no digital é representativo – embora, ilegítimo – por beneficiar-se da natureza pervasiva e ubíqua desses recursos (Segata e Rifiotis, 2016), além de garantir o aproveitamento do "novo regime de informação" (Bezerra, 2017). Com isso, pode-se demonstrar, explicitamente, como a existência de lacunas legais sobre a atuação médica em redes sociais possibilita a emergência de um jogo de narrativas com capacidade para driblar e minar os sistemas socioculturais vigentes, a fim de ganhar em reverberação a partir do seu alcance – principalmente, quando apoiadas em plataformas e dispositivos digitais.
A retroalimentação desse ciclo de interação favorece e estimula a circulação de informações no campo midiatizado, já que tal dinâmica firma-se como um projeto comunicacional e político atrelado ao processo de digitalização e de neoliberalização global contemporâneo (Cesarino, 2021), imbuído da dissolução de olhares heterogêneos, de pontos de vista alternativos e, em determinados casos – pode-se afirmar – de valores humanos e sociais.
A proposição de uma solução repousa na implementação de normativas jurídicas mais precisas e no desenvolvimento de uma comunicação digital mais ética, apoiada no reconhecimento da imprescindibilidade de uma produção de conteúdo online responsável pelos devidos profissionais, baseada na ciência – e, obviamente, nos referenciais médicos, como bem desejaria Hipócrates.