Oficinando no pós-enchente:
afetos, infância e construções de narrativas com o jogo “A Galáxia dos Afetos”
Palavras-chave:
oficinas, jogos, afeto, infância, enchenteResumo
O presente trabalho está vinculado ao projeto de pesquisa "Oficinando em rede: Tecnopolítica dos Afetos", do Núcleo de Ecologias e Políticas Cognitivas (NUCOGS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no qual temos o intuito de estimular perturbações e contágios sensíveis que questionem regimes de percepção, enunciação e visibilidade, como também tornar mais complexas e singulares as tramas de afetações e romper com narrativas que promovem o apagamento do outro. No ano de 2024, lançamos o livro infantil e jogo "A Galáxia dos Afetos" (MARASCHIN et al., 2024), elaborado pelo grupo para trabalhar os afetos e questões interseccionais com crianças. O livro é ilustrado e conta a história dos planetas "Alegrix", "Raivix", "Pavorix", "Tristezix" e "Vergonhix", cujos habitantes experimentam apenas um afeto: alegria, raiva, medo, tristeza ou vergonha, respectivamente. O jogo inclui um tabuleiro, dados, naves, esferas de afetos e cartas que indicam a missão de cada jogador ou grupo.
Enquanto discutíamos as possibilidade de realização das oficinas através do projeto de extensão Jogos e Interseccionalidade na Escola, fomos surpreendidas (os/es) por um evento climático extremo: uma enchente histórica que acometeu mais de 470 municípios no Rio Grande do Sul no mês de maio de 2024. Tal acontecimento trouxe uma reconfiguração de nossos planos e ocupou, de modo irreversível, um espaço nos debates que vínhamos construindo no grupo. Tornou-se necessário, então, priorizar os espaços que foram atingidos pela enchente ou que funcionaram como abrigo temporário.
Diante da intensidade do presente que nos atravessava e inundadas (os/es) pelos diversos afetos, imaginamos que as crianças ainda poderiam estar imersas de maneira total ou parcial com a temática. E, considerando o curto espaço de tempo entre a água baixar em alguns bairros da cidade, o retorno das aulas e o início das oficinas, cogitamos que as crianças trariam relatos sobre o impacto da enchente e o cenário de calamidade vividos por elas e suas famílias sem que o assunto fosse previamente abordado. Nesse contexto, a oficina foi oferecida como forma de cultivar cuidado, alternativa que permitisse às crianças mobilizar seus afetos de maneira única e criar novas narrativas, possibilidades e experiências, expressando suas emoções no contexto e da forma como surgissem.
Tendo como ferramenta as oficinas com crianças, buscamos forjar mundos que desafiem as estruturas convencionais e possibilitem arranjos micropolíticos alternativos, tecidos a partir de redes sociotécnicas, afetivas e linguageiras, entrelaçadas de maneira criativa. Esses novos mundos aspiram não apenas a refletir ou subverter o existente, mas também a agenciar novas formas de co-engendramento, onde múltiplos atores — humanos e não-humanos — contribuem para a construção de universos ricos em possibilidades. Assim, trata-se de explorar como diferentes materialidades e linguagens podem ser mobilizadas para inventar realidades nas quais outras relações, afetos e imaginários possam surgir e florescer (MAURENTE; COSTA; MARASCHIN, 2022).
Assim como Sara Ahmed (2014), o jogo busca questionar o que os afetos fazem, ao invés de o que eles são. Para a autora, as emoções não são apenas respostas a estímulos ambientais, como formas de reagir universais, que existem anteriormente aos sujeitos e pertencem a eles. E sim algo que constrói e é construído pela relação do sujeito com o mundo. Dessa forma, o jeito como respondemos emocionalmente, ou o jeito que experienciamos as emoções é moldado, dependendo de onde o nosso corpo é enquadrado nas relações de poder, e, simultaneamente, moldam nossos corpos, colocando-os em um certo local da hierarquia social, aumentando ou diminuindo nossas possibilidades de ação (AHMED, 2014). Em vez de “ensinar” o que cada afeto é, o jogo convida os jogadores a expressarem quando sentem aquele afeto, o que gostam de fazer quando ele surge e como vivem cada afeto em suas próprias experiências. Propõe que reflitam sobre as nuances dos afetos, se o afeto experimentado pode ser semelhante a outros ou coexistir com afetos que parecem opostos, como raiva e alegria. Além disso, permite uma troca de narrativas, que ouçam as narrativas uns dos outros, provocando uma consideração a respeito de suas próprias vivências, de seus familiares ou amigos e daquelas que se apresentarem como inventadas, notando as semelhanças e diferenças nesse processo.
Sendo assim, tomando a metáfora da bolsa de ficção de Ursula K. Le Guin (2021), nossa proposta é também de descentralização e desconstrução da figura do herói. Le Guin (2021) nos apresenta que, ao colocar o herói em um "cesto" ou bolsa junto a objetos comuns, como batatas, ele perde seu status hierárquico. Na bolsa, o herói torna-se uma singularidade entre muitas outras, uma força que coexiste com outras potências em um espaço horizontal e coletivo. A bolsa, então, torna-se o espaço de convivência e cooperação, onde cada elemento compartilha a capacidade de protagonizar sua história. Para o saber da psicologia, isso representa uma maneira de estar presente não como figura central, mas como alguém que cultiva espaços de acolhimento, permitindo o entrelaçamento de vozes e experiências, abrindo espaço para novas formas de narrar, bem como de escutar (POLÍTICAS DO NARRAR, 2022).
As oficinas iniciam com a leitura do livro “A Galáxia dos Afetos” (MARASCHIN et al., 2024), para que a narrativa de cada um dos cinco planetas da galáxia seja apresentada às crianças. Pensado para crianças de 8 a 12 anos, o jogo de tabuleiro tem como objetivo viajar pela galáxia, recolhendo esferas de afeto para distribuí-las pelos planetas de acordo com as instruções da carta de missão (por exemplo, “Os habitantes do planeta Alegrix atravessam a rua sem olhar para os lados, às gargalhadas. Leve duas esferas de medo ao planeta Alegrix e conte o que aconteceu por lá”). Vence o jogador ou grupo que completar primeiro sua missão. No tabuleiro, além dos cinco planetas, há casas que contêm perguntas relacionadas aos afetos. As crianças precisam responder a questões como: “Você conhece alguém que nunca sente raiva?” ou “Narre uma situação em que você sentiu vergonha envolvendo um aniversário”. Essas narrativas podem ser reais ou inventadas, e rendem uma esfera de afeto do planeta correspondente. Além disso, existem as “zonas mistas”, onde diferentes afetos se misturam. Nessas áreas, os jogadores devem responder a perguntas como: “Você já sentiu medo de passar vergonha?” ou “Você já ficou com raiva por estar triste?”.
No mês de outubro, visitamos a Escola Municipal de Educação Básica Doutor Liberato Salzano Vieira da Cunha, localizada no bairro Sarandi, um dos mais afetados pelas águas torrenciais. A escola está funcionando em uma paróquia local, já que suas instalações seguem em obras e ainda não puderam reabrir. Em uma tarde, jogamos com as turmas de quarto e quinto ano, totalizando aproximadamente 90 crianças.
Quando chegamos, no primeiro andar da paróquia, uma professora ministrava uma aula de educação física (adaptada ao local) para algumas crianças entretidas. Estávamos em um salão amplo, decorado com desenhos infantis nas paredes, que ofereciam ao espaço um ar de ambiente escolar. No segundo andar, dois salões menores foram adaptados para comportar as aulas expositivas, com mesas, cadeiras e lousa. Os alunos estavam sentados, com seu material sobre a mesa, atentos à aula. Durante a leitura do livro, alguns pediram para folhear, acessar os desenhos e ler junto. Outros ficaram mais distantes, ouvindo e refletindo sobre a narrativa. Na etapa do jogo, em alguns tabuleiros, o compartilhamento de afetos foi lento e escasso, mas, em outros, aconteceu de forma intensa. Algumas crianças gostaram tanto do jogo que pediram para jogar outra vez, enquanto outras não quiseram participar de nenhuma rodada. E, durante toda a oficina, surpreendentemente, nada relacionado à enchente foi relatado.
Noguera (2019, p. 131) afirma que a infância “é a emergência de um acontecimento que interrompe o fluxo corriqueiro das coisas, suscitando algo”. Nesse sentido, as crianças trouxeram narrativas sobre o luto pela perda de um ente querido, jogos de videogame, futebol, conflitos na escola, e até a emoção em escutar uma música. Além disso, sentiram-se livres para criar situações quando não tinham algo pessoal para representar o afeto explorado.
Enquanto estávamos preocupados em como acolheríamos as narrativas que surgiriam como consequência da enchente, as crianças narram eventos “banais” da infância, resistindo à invisibilização de seus olhares sobre o mundo, trazida pela construção de um senso-comum de ver e agir (MAURENTE, COSTA, MARASCHIN, 2022). Tal acontecimento interrompeu a narrativização da catástrofe climática através de uma visão adultocêntrica do luto e do trauma por uma vida que já não existe. A partir disso, abriu-se espaço para a possibilidade de pensar e explorar outros acontecimentos, co-engendrar e reinventar o mundo a partir da infância (NOGUERA, 2019).
Desse modo, as oficinas constituíram-se como espaço onde as crianças foram convidadas a compartilhar suas histórias singulares, construindo caminhos próprios e exercitando a imaginação, em lugar de serem compelidas a relatar experiências traumáticas relacionadas aos eventos climáticos vivenciados. A não abordagem do tema da enchente, que inicialmente pensávamos ocupar um lugar central, mostrou que a infância também é um espaço de multiplicidade de vivências, seja ela como recusa ao imperativo de narrar a dor ou de um exercício de criação de novas possibilidades de ser e estar no mundo.
Por fim, reafirmamos o poder dos afetos e da infância de desestabilizar ordens preestabelecidas, permitindo que as crianças façam emergir suas histórias e vivências “banalizadas” pela adultização dos eventos. Cada narrativa e cada afeto explorado nas oficinas revelam que a infância é, em si, um ato de resistência contra uma visão homogeneizadora e adultocêntrica do mundo. O processo de escuta e partilha, promovido pelo livro e jogo "A Galáxia dos Afetos" (MARASCHIN et al., 2024), possibilitam ao sujeito a experiência do deslocamento de um lugar de assujeitamento (onde tudo já está dado) para um lugar de criação de sua própria história, entrelaçada à dos outros, ressaltando a importância de criar uma psicologia que se coloca não como voz superior, mas como acolhimento e suporte na multiplicidade das existências e afetos. Que esses encontros continuem a expandir nossos sentidos, a criar outros mundos e a desafiar os modos hegemônicos de sentir, agir e narrar — abrindo caminho para uma educação que se faz no entrelaçamento sensível de vozes, afetos e potências transformadoras.