Queer e feminismo no Frankenstein de Mary Shelley e sua influência monstra nas obras audiovisuais atuais

Autores

  • Eliana Loureiro FAAP
  • So´phie Santos Trovato FAAP

Palavras-chave:

arte, ciência, tecnologia, feminismo, queer

Resumo

Frankenstein é uma das primeiras ficções científicas. Escrito por uma mulher, Mary Shelley, a obra foi publicada em 1818 (2014). A inspiração vem de um pesadelo: a visão de um estudante debruçado sobre um corpo que, com o auxílio de uma máquina, começava a se movimentar como se estivesse vivo (Harkup, 2023). Shelley não colocou seu nome na primeira edição da obra; a autoria só foi assumida na edição revisada de 1831 (Lepore, 2018). Nos dias atuais, se fala muito de Frankenstein, o Prometeu moderno, como uma analogia à tecnologia e o medo de perdermos o controle sobre as criaturas que criamos (o tal do “complexo de Frankenstein”) (Coeckelbergh, 2023). No entanto, Shelley se baseou nas descobertas científicas da época (como relata na introdução da edição revisada), mas como tantos escritores, também em sua própria experiência.

A mãe de Mary Shelley também foi escritora e sua obra mais famosa foi Reivindicação dos Direitos da Mulher. No texto, defendia que as mulheres não eram naturalmente inferiores aos homens (como era a crença), mas apenas ‘pareciam’ ser por lhes faltarem instrução e educação do mesmo nível. Foi, portanto, uma das fundadoras da filosofia feminista e importante influência para o surgimento do movimento (Harkup, 2023).

Apesar de não ter convivido com a mãe, que morreu no parto da escritora, ela não deixou de ser uma referência. Seus ensinamentos foram transmitidos pela educação dada pelo pai, como também pelo contato com suas obras. Vivendo na Londres do século XIX, mãe e filha presenciaram, cada uma a seu tempo, as respectivas transformações sociais e econômicas do período, que influenciaram, entre outros aspectos, as mudanças na organização familiar e, sobretudo, no papel exercido pelas mulheres na sociedade. O fortalecimento do sistema econômico capitalista a partir do século XVII, intensificado nos séculos seguintes e caracterizado pelo trabalho industrial, abalou profundamente a posição feminina, sujeitando-a a um trabalho de reprodução, tido como “um instinto natural da mulher” e, portanto, invisibilizado, em que elas foram excluídas de ocupações assalariadas e se criou a figura da dona de casa em tempo integral (Federici, 2004).

Durante muito tempo, Frankenstein foi reconhecido por seus elementos de terror e ficção científica. Chocou o público e a crítica pelo seu tom assustador. Na estória, um homem junta partes de cadáveres tentando gerar vida de modo forçado, indo contra as leis e processos da natureza; quando ele próprio se assusta com as feições de sua criação, ele a rejeita e a criatura, abandonada e rejeitada, decide se vingar brutalmente, levando seu criador à ruína. Ainda que o enredo seja impressionante por si só, a obra também possui um caráter altamente reflexivo: se o estudante tivesse se responsabilizado por sua criação, empenhando-se em cuidar dela ao invés de abandoná-la, o final poderia ter sido diferente. Não à toa o subtítulo escolhido para o livro, O Prometeu Moderno, espelha o modo como o protagonista, Victor, deseja ser reconhecido como o “criador de uma nova espécie”, assim como o Prometeu do antigo mito grego. Para tanto, ambos se apoderam dos meios necessários para gerar vida, antes restrito apenas a seres específicos: deuses ou mulheres. Logo, em suas obras, Shelley e Wollstonecraft refletem sobre a interferência do homem no universo feminino e a separação de “funções” delimitadas aos gêneros (Mellor, 1988).

Evidenciando as consequências dessa divisão social em seu universo fictício, Shelley leva em consideração as escolhas e papeis de cada personagem em sua narrativa, sobretudo pela perspectiva do protagonista Victor que, enquanto homem, está centrado na esfera do trabalho intelectual e, portanto, da vida pública. Suas atitudes e opiniões em relação à criatura exprimem suas prioridades para com seu trabalho e sua própria reputação, desconsiderando a necessidade de afeto e cuidado tidas por ela (Mellor, 1988).

A crítica a essa dominação masculina também se faz presente nos demais elementos da obra, sobretudo nas personagens femininas que cercam a vida de Victor e da criatura. Sendo sempre retratadas com um aspecto frágil e puro, elas parecem orbitar em volta do protagonista para servi-lo, em mais uma crítica a essa divisão e diferença de tratamentos característicos daquele período; é o exemplo de Elizabeth, noiva de Victor, descrita no romance como sendo dotada de “uma disposição calma e concentrada” (Shelley, 2014, p. 53). Também segundo as palavras do protagonista, “a alma santa de Elizabeth brilhava como uma lamparina (...). Seu sorriso, sua voz suave, o doce vislumbre de seus olhos celestiais sempre estavam presentes para nos abençoar e animar” (Shelley, 2014, p. 54); a descrição de uma personalidade delicada e dócil condizia com as expectativas para o comportamento das mulheres à época, caracterizando, além da obediência e do silêncio, o cuidado e o zelo esperados para com os membros da família e as questões relativas a eles. 

A narrativa de Shelley também reflete certos âmbitos de sua própria vida pessoal, sobretudo por meio da criatura. O nascimento de alguém que, além de não poder contar com a presença de uma mãe, também  sofre com o descaso do pai, pode ser interpretado como a representação das condições vividas pela autora - do mesmo modo, as experiências traumáticas em relação à maternidade (tanto pela perda de uma figura materna quanto pela perda de seus filhos, já na vida adulta). “Mary articulou seu medo mais profundo de que uma criança não amada (e psicologicamente abusada), como ela mesma havia sido, poderia se transformar numa mãe abusiva e sem amor, ou mesmo em um monstro matador” (Mellor, 2018, p. 3).

Essa percepção da figura feminina (e, no caso de Shelley, de si própria) como um ser monstruoso abrange outros aspectos importantes da obra, a exemplo do momento em que Victor rejeita o pedido do monstro em ter uma companheira sob o pretexto de que se ela gerar filhos, ambos poderiam dar origem a uma espécie de seres ainda mais temíveis; além disso, sob sua ótica, nada garantiria que ela não seria tão maligna quanto sua primeira criação. Mais uma vez se concretiza um exemplo de dominação do corpo feminino e seu sistema reprodutivo, bem como a opressão às aparências e atitudes consideradas “fora do padrão aceitável” para as mulheres. Em análises mais recentes, esse cenário tem se expandido para, além de grupos femininos, outros conjuntos sociais e contextos de gênero, onde a figura do monstro têm sido utilizada como uma metáfora para as suas condições, também marginalizadas e invisibilizadas. Dinâmica vivida por determinados grupos sociais, uma vez que “a mulher lésbica, negra e/ou trans, bem como tantas outras subjetividades queer, são percepcionadas como monstros numa sociedade que nega a existência de tais identidades” (Baptista, 2022, p. 102). 

Expandindo essa perspectiva especificamente sobre as comunidades queers (indivíduos que não se enquadram em padrões tradicionais de sexualidade e gênero), Fox (2017) também aponta as conexões existentes entre a monstruosa da criatura e esses grupos em questão, evidenciando a marginalização sofrida por ambos, uma vez que, em suas palavras, “o Monstro lida com uma alienação vertiginosa de seu próprio corpo e a impossibilidade de se passar como uma pessoa ‘normal’”, ressaltando, ainda, como a sua figura considerada inaceitável torna-se rejeitada, o que o obriga a manter-se recluso e isolado.

Por tocar tão profundamente nessas angústias, a obra de Mary Shelley continua se mostrando extremamente pertinente nos dias atuais não apenas por retratar as transformações sociais de seu período histórico tão intenso, mas também por criticá-las de modo afiado e provocar reflexões que ainda se aplicam à sociedade atual; mais do que uma obra inovadora nos gêneros de literatura gótica e ficção científica, Frankenstein também se mostra atemporal em seu olhar sobre os humanos, seus atos, medos e escolhas.

Ou seja, é possível supor que o feminino, o feminismo e o queer perpassem o Frankenstein de Mary Shelley, um livro que já teve diversas adaptações para o audiovisual e também inspirou tantas outros filmes. A partir disso, nos propomos a responder à seguinte pergunta: as adaptações cinematográficas atuais de Mary Shelley sofrem influência do gênero de seu diretor? Quando a obra é dirigida por uma mulher, apresenta questões do feminino e do feminismo? Isso se perde quando a direção é feita por um homem? Para isso, decidimos analisar um recorte que vai de 2023 a 2024, de obras inspiradas por Frankenstein, sendo eles dois homens (Bomani J. Story e Yorgos Lanthimos) e duas mulheres (Laura Moss e Zelda Williams). São elas: Birth / Rebirth (2023); The Angry Black Girl and her Monster (2023); Pobres Criaturas (2023); Lisa Frankenstein (2024).

Palavras-chave

Arte; ciência; tecnologia; feminismo; queer.

Referências 

Baptista, Miguel Ângelo. Frankenstein ou a monstruosidade como prática feminista e subjetividade queer. 2022. Dissertação (Mestrado) - Curso de Edição de Texto, Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal, 2022. Disponível em: <https://run.unl.pt/handle/10362/162403>. Acesso em: 06 nov. 2024.

Coeckelbergh, Mark. Ética na inteligência artificial. Traduzido por Clarisse de Souza et al. São Paulo/Rio de Janeiro: Ubu Editora/Editora PUC-Rio, 2023. 

Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2019.

Fox, Charlie. Why Frankenstein's Monster Haunts Queer Art. ln: The New York Times. The New York Times Style Magazine. [S.l.]. 13 out. 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/10/13/t-magazine/art/frankenstein-monster-queer-art.html>. Acesso em: 6 nov. 2024.

Harkup, Kathryn. Frankenstein: Anatomia de Monstro. Tradução: Giovanna Louise Libralon. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2023. 336 p. Título original: Frankenstein: Making the Monster.

Mellor, Anne K. Frankenstein, Gender and Mother Nature. ln: Arizona State University. Frankenbook. Estados Unidos, 30 abr. 2018. Disponível em: <https://www.frankenbook.org/pub/frankenstein-gender-mother-nature/release/3>. Acesso em: 6 nov. 2024.

Mills, Kirstin. The Birth of Frankenstein: Ghost Stories, Vampires & Villa Diodati. ln: Kirstin Mills. Kirstin Mills. Estados Unidos, 24 out. 2018. Disponível em: <https://www.kirstinmills.com/blog/frankenstein-ghost-stories-vampires-villa-diodati/>.  Acesso em: 9 nov. 2024.

Shelley, Mary. Frankenstein ou o Prometeu moderno. Tradução Adriana Lisboa 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

Souza, João Thomaz M. C. Ada Lovelace: A primeira programadora da história. Espaço do conhecimento UFMG. Disponível em: <https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/ada-lovelace-a-primeira-programadora-da-historia/>. Acesso em 09 nov 2024

Publicado

02-12-2024